Compartilhar
Judicialização da Saúde: STF e ANS redesenham regras para tecnologias e cobrança no setor suplementar
Uma nova era de “provas” e “autorregulação regulada” exige adaptação de profissionais de saúde e operadoras para evitar litígios e garantir acesso justo

Na noite desta segunda-feira (27), no auditório José Paulo Sepúlveda Pertence, sede da Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), o advogado José Luiz Toro da Silva, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Saúde Suplementar (IBDSS) e especialista em Direito da Saúde Suplementar e Mario Eduardo Barberis, Gerente Executivo Jurídico da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil. (CASSI) proferiram palestra sobre “Ciência, Direito e Saúde: Novos Marcos do STF (ADI) 7265”. Foram mediadoras as doutoras Vivian Arcoverde e Paula Cordeiro, vice-presidente e secretária-geral da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/DF. Confira nesta matéria os principais esclarecimentos feito pelos participantes sobre esse tema.
A escalada da judicialização na saúde, que leva cerca de um milhão de casos anuais aos tribunais brasileiros, está forçando uma redefinição das regras do jogo, segundo explicou o advogado Toro da Silva. Em um cenário complexo, em que decisões judiciais impactam diretamente a oferta de serviços e a sustentabilidade do sistema, o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) impuseram marcos que exigem atenção redobrada de médicos, hospitais e administradores de planos.


Vivian Arcoverde, vice-presidente da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/DF
“A decisão do STF na ADI 7265 representa um ponto de inflexão para o setor de saúde suplementar. O STF reafirmou a importância de garantir acesso a tratamentos inovadores, mas condicionando essa ampliação de cobertura a parâmetros técnicos claros. Isso confere mais previsibilidade ao sistema e segurança jurídica para todas as partes envolvidas”, destacou Vivian Arcoverde, vice-presidente da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/DF.
“Para além do aspecto jurídico, a decisão também provoca uma mudança de cultura: exige maior qualificação dos processos internos das operadoras, mais responsabilidade na prescrição médica e mais rigor técnico nas decisões judiciais. Trata-se de um alinhamento entre ciência, direito e regulação”, comentou Vivian. Ela ainda ponderou: “Nosso papel, enquanto advocacia, é contribuir para que esses parâmetros sejam aplicados com equilíbrio — protegendo o direito do beneficiário, mas garantindo a sustentabilidade do sistema. Isso significa menos litigiosidade e mais diálogo institucional, com a ciência no centro da tomada de decisão.”


Na análise de Toro da Silva sobre as recentes mudanças legislativas e judiciais, “o Judiciário vem sendo o regulador da saúde no Brasil, algo impensável em outras nações”. Para ele, é urgente uma abordagem mais técnica e menos litigiosa.
A virada do STF: 5 critérios cumulativos para o “Rol Extra”
A grande novidade nessa temática veio com a intervenção do STF sobre a Lei 14.454/2022, que criou o chamado “rol extra” para a saúde suplementar. Em votação apertada (7 a 4), o Supremo não declarou a lei inconstitucional, mas impôs uma interpretação que muda radicalmente a forma como novas tecnologias e tratamentos serão autorizados fora da lista obrigatória da ANS.
Para que uma operadora seja obrigada a cobrir um procedimento “fora do rol”, cinco condições precisam ser comprovadas de forma cumulativa:
1. Prescrição qualificada: deve haver prescrição por médico ou odontólogo habilitado;
2. Sem negativa ou análise prévia da ANS: a tecnologia não pode ter sido previamente negada pela ANS ou estar em processo de análise;
3. Falta de alternativa no rol: inexistência de alternativa terapêutica adequada no próprio rol da ANS;
4. Evidência científica robusta: comprovação de eficácia e segurança baseada em evidência científica de alto grau;
5. Registro e avaliação econômica: a tecnologia deve possuir registro e ter passado por uma avaliação econômica favorável.
O ponto fundamental para o profissional da área da saúde é: “O ônus da prova para estes cinco critérios não é do paciente, mas do médico que prescreve”, como alerta o Dr. Toro da Silva. Isso significa que a prescrição não é mais um “cheque em branco”. Para justificar um tratamento não listado, o profissional precisará fundamentar a solicitação com evidências científicas robustas, como revisões sistemáticas e meta-análises. A “opinião de especialista”, antes suficiente, agora é considerada “evidência fraca” na hierarquia da Medicina Baseada em Evidências (MBE).
ANS 623: A nova lógica da regulação e as Ouvidorias
Paralelamente, a Resolução Normativa 623 da ANS, em vigor desde 1º de julho, marca uma transição de um modelo de “comando e controle” para uma “autorregulação regulada”. A ANS passará a focar na “macrorregulação”, enquanto as operadoras deverão aprimorar seu “microrregulação” interna.
* Metas de Desempenho e Monitoramento: Operadoras serão monitoradas por indicadores de desempenho, com metas e acompanhamento trimestral. A ANS atuará na “regulação premial”, divulgando as empresas com melhor performance.
* Comunicação Transparente: A Resolução 623 é chamada de “resolução do acolhimento”, enfatizando transparência, clareza e resolutividade nos atendimentos (presencial, telefônico e virtual).
* Fiscalização e Multas: Novas normas de fiscalização (sumário, ordinário, estrutural) entrarão em vigor em 31 de outubro, e as multas, não reajustadas desde 2006, aumentarão em 2,7 vezes. O objetivo, contudo, é provocar “mudança de comportamento” e não apenas punir.
* Implicações para as instituições: “Muitos problemas que viram judicialização ou NIPs (Notificações de Intermediação Preliminar) são fruto da má comunicação”, adverte o advogado Toro da Silva. Operadoras e hospitais precisam investir em canais e processos que garantam clareza e acolhimento para o beneficiário, ou enfrentarão as novas formas de monitoramento e sanções da ANS.
Judiciário: fim do “achismo”; “foco na ciência
A decisão do STF reforça que o juiz deve analisar processos com base em “matérias jurídicas”, não em méritos técnicos para os quais não possui expertise. Ele deve exigir comprovação de que o beneficiário buscou a operadora e obteve negativa por escrito – uma exigência da própria RN 623.
A crítica do dr. Toro da Silva à “hiperjudicialização” é contundente: “Não é justo jogarmos para os ombros dos juízes sexta-feira à tarde resolver programas e políticas públicas de saúde no Brasil”. A busca por uma “justiça multiportas” – via administrativa, ouvidoria, órgãos de conciliação – é a via mais racional, já que buscar múltiplas vias simultaneamente (ANS, Consumidor.gov, Judiciário) configura “abuso de direito”.
O impacto final: sustentabilidade e qualidade do acesso
“Qualquer decisão sobre incorporação de tecnologias afeta a sustentabilidade do plano privado”, conclui dr. Toro da Silva. Imposições judiciais sem critérios técnicos elevam os custos, resultando em planos mais caros e, paradoxalmente, restringindo o acesso para muitos. O caminho é uma “qualificação maior do debate”, em que a ciência, a transparência e a boa comunicação prevaleçam sobre a litigância desenfreada.
Profissionais e instituições de saúde, portanto, segundo o advogado, precisam se aprofundar nas novas regras, fortalecer suas evidências e aprimorar seus processos internos. Essa seria a garantia de um sistema mais justo e eficiente para todos.
Uma visão complementar


Mário Eduardo Barberis, Gerente Executivo Jurídico da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (Cassi), em sua participação no debate, elogiou a recente decisão do STF como “muito ponderada” e “sábia”, especialmente para entidades como a sua.
Barberis fez questão de frisar a natureza das operadoras de autogestão: “elas não têm finalidade lucrativa… não visam lucro”. Diferentemente das operadoras de mercado, o excedente financeiro dessas instituições é reinvestido em melhorias no atendimento, credenciamento de redes e serviços para seus participantes, conforme explicou.
O impacto direto da judicialização nas autogestões
Para as autogestões, a judicialização desordenada é um desafio ainda mais crítico. “Toda vez que existe uma condenação judicial, essa condenação não sai do lucro, ela tira dos demais participantes da operadora”, explicou Barberis. Em um modelo mutualista, onde os participantes contribuem para um fundo comum para arcar com os custos de saúde, cada decisão que impõe coberturas inesperadas afeta diretamente a coletividade, comprometendo a sustentabilidade do plano e a qualidade geral dos serviços.
Portanto, a decisão do STF, com seus cinco parâmetros cumulativos para a incorporação de tecnologias “fora do rol”, foi recebida com otimismo pelo representante da Cassi. Ele destacou que a decisão “não exclui nada do rol, mas, como o dr. Toro da Silva já havia dito, traz segurança jurídica”.
Mais importante, segundo Barberis, é a proteção que a decisão oferece ao próprio participante do plano. Ao exigir evidência científica robusta para procedimentos novos, o STF mitiga o “risco de ter uma terapia nova que pode até ter funcionado muito bem em algumas pessoas, mas pode ter feito mal em outras”. Ele citou exemplos de terapias e medicamentos que acabaram sendo revistos, evidenciando a importância da base científica para a segurança do paciente.
Previsibilidade essencial para a sustentabilidade
A falta de previsibilidade, causada pela imposição judicial de procedimentos sem critérios claros, é o grande calcanhar de Aquiles para as autogestões. “Se você tem que gastar muito com procedimentos que não constam do rol, você acaba perdendo a previsibilidade, acaba comprometendo a sustentabilidade do plano”, ressaltou Barberis. Foi essa preocupação que motivou o movimento da Unidas para levar o debate ao STF.
Ele enfatizou que, no final das contas, quem suporta o custo das novas tecnologias não são as operadoras, mesmo as não lucrativas. “Tudo isso acaba sendo embutido no preço, e que é pago pelo participante”.
Equilíbrio e desafios futuros
Embora a decisão do STF seja vista “com bons olhos” pela Cassi e pelas demais autogestões da Unidas, Mário Eduardo Barberis é realista. Ele reconhece, como Dr. Toro da Silva já havia pontuado, que a decisão “não resolve automaticamente o problema”. Ainda existirão novos debates e muita coisa a ser discutida, especialmente em áreas onde o consenso científico ainda não foi alcançado, como no caso da esclerose múltipla.
A questão do custo também é central. Se todos tiverem acesso a tudo, como num cenário hipotético, “não existe orçamento que resista”, seja na saúde suplementar ou pública. A decisão do STF, portanto, é “benéfica” e “sábia” por buscar um “equilíbrio nessa relação entre os participantes e operadores”.
A visão de Mário Eduardo Barberis reforça a necessidade de um sistema de saúde com regras claras e previsíveis, onde a ciência seja o guia para a incorporação de tecnologias, e a sustentabilidade dos planos seja protegida para garantir o acesso a serviços de qualidade para todos os seus beneficiários.


Ao término da palestra, a secretária-geral da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/DF, Paula Cordeiro, comentou que “foi uma oportunidade de apresentar um assunto de grande relevância para o setor de saúde suplementar, no qual pode trazer uma grande atuação das operadoras de saúde quanto à sua sustentabilidade e forma de gestão”.


A palestra aconteceu com organização e apoios da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/DF; OAB/DF 360°; Escola Superior de Advocacia do DF (ESA/DF); Caixa de Assistência dos Advogados do DF (CAADF) e OAB/DF.
Jornalismo OAB/DF

