Ao se mudar do bairro Nogueira para o da Cascatinha, no distrito de mesmo nome em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, a auxiliar de serviços Caroline Pomin teve prejudicada uma parte importante da dinâmica familiar: a comunicação.
Ela não encontrou no novo endereço o sinal de celular e a internet móvel que tinha no antigo. Desde que se mudou, há um ano, não vê o símbolo do 4G no celular.
“Não pega nenhum sinal dentro de casa nem no trabalho. Eu preciso ir para a rua para conseguir falar com meus filhos no telefone”, conta.
Às vésperas do leilão do 5G, marcado para a próxima quinta-feira (4), 8,7 milhões de brasileiros como Caroline vivem numa espécie de apagão de 4G, a tecnologia anterior à quinta geração de telefonia, que promete maior velocidade de transmissão de dados e está atrasada no país.
Dados da Anatel anexados ao edital do 5G e compilados pelo GLOBO indicam que os excluídos digitais estão em 9.748 localidades que podem ser consideradas pontos cegos para o 4G.
A maior parte dessas áreas está em 416 cidades com menos de 30 mil habitantes, mas a lista também tem localidades mais populosas, em cidades médias, como Petrópolis (RJ), Uberaba (MG) e Vitória da Conquista (BA), e até em grandes centros, como São Paulo (SP).
Áreas pouco atrativas
São áreas que não foram contempladas com investimentos obrigatórios no leilão do 4G, em 2014. O compromisso de universalizar o acesso só foi incluído agora pela Anatel, no edital do leilão do 5G.
Empresas que vencerem o leilão deverão levar ao menos a cobertura 4G a essas áreas e alcançar a universalização do 5G até 2028, dependendo da região.
Onde o 4G não passa de uma miragem, há uma realidade que impacta o cotidiano de moradores e empreendedores, principalmente em tempos de pandemia, quando muitos estudantes tiveram aulas online, profissionais adotaram o home office e estabelecimentos investiram em serviços de entrega.
Em Petrópolis, cerca de um terço da população de 300 mil habitantes tem acesso comprometido ao 4G, segundo os dados da Anatel. A falta da cobertura em Secretário, no distrito de Pedro do Rio, em Petrópolis, afetou a renda do chef Daniel Mattos desde o começo da pandemia.
Com o home office, aumentou o número de pessoas interessadas em alugar seu sítio. No entanto, ele calcula ter perdido quase R$ 100 mil por não ter sinal de celular:
“Os clientes que preferem alugar durante a semana escolhem (o sítio) para ser um novo ambiente para o home office e dependem de sinal de telefone e 4G para trabalhar.”
A dificuldade de sinal também incomoda Mylena Dantas, de 22 anos, que mora há quatro anos no bairro do Bonfim, no distrito de Itaipava, uma área urbanizada e valorizada de Petrópolis:
“Se quiser tentar um sinal de 4G, esquece. Não pega de jeito nenhum. É horrível.”
Segundo especialistas, a geografia de regiões como a Serra fluminense encarece a instalação de antenas e desestimula as operadoras a ampliar as redes.
Outras localidades, como áreas rurais, periferias e favelas, ficam à margem da cobertura por falta de interesse comercial das empresas. É mais difícil instalar antenas e a renda dos moradores é menor para pagar pelos serviços.
No distrito de Marsilac, no extremo da Zona Sul de São Paulo, a maior cidade do país, não há sinal de internet móvel e nem mesmo de celular. A carência digital crônica agravou as dificuldades de crianças parar acompanhar aulas online na pandemia.
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Membro da diretoria da ONG e Associação de Moradores SOS Marsilac, Roberto Tiago Degrande conta que, há cerca de um mês, um homem morreu após sofrer um infarto de madrugada.
A família não conseguiu ligar para a ambulância. Quando decidiram colocá-lo num carro para levá-lo a um hospital, era tarde.
“A desculpa que ouvimos para a falta de sinal aqui é que, como se trata de uma Área de Proteção Ambiental (APA), não podem colocar antena. Mas há outras APAs próximas com antenas”, diz Degrande. “A impressão que dá é que não traria retorno financeiro, por isso não colocam.
Lacunas no Brasil digital
Para o especialista em redes sem fio e professor do Laboratório de Redes e Multimídia da UFRJ, Claudio Miceli, apesar de o número de excluídos do 4G em relação ao tamanho da população (212 milhões) indicar uma cobertura alta, quase 9 milhões configuram um contingente expressivo de “excluídos digitais”.
Ainda mais considerando que boa parte está em áreas urbanas. Segundo levantamento da consultoria Teleco, os excluídos do 4G em cidades com menos de 30 mil habitantes são 2,5 milhões, menos de um terço do total nas localidades listadas pela Anatel.
Miceli observa que a ausência do 4G indica alta probabilidade de a internet fixa nessas áreas ser de baixa velocidade.
“Temos que pensar quantos não têm acesso mesmo em regiões cobertas”, diz o especialista. “O Brasil quer ser um país digital? Se a resposta for sim, tem que mudar isso.”
Parte desse problema vem do modelo adotado no leilão do 4G, em 2014, que privilegiou como critério da disputa o pagamento de outorgas, valores pagos pelo governo ao Tesouro, sem estabelecer investimentos obrigatórios na universalização do acesso.
Como regiões periféricas ou rurais têm menor atratividade econômica, tiveram investimentos abaixo do necessário, diz Luca Belli, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Direito Rio.
“Na favela ou na área de baixa renda, fica mais caro se precisar subir a fibra óptica em um morro ou uma pedra. Depois, as pessoas que estão lá não têm condições econômicas para pagar os custos. Por isso, são zonas de falhas de mercado”, explica.
Investimento obrigatório
O leilão do 5G tenta corrigir essas falhas listando as localidades no edital para as quais as vencedoras terão que levar ao menos o 4G até avançar com a rede 5G. Marcos Ferrari, presidente executivo da Conexis Brasil Digital, diz que o governo poderia já ter amenizado essa situação se investisse os cerca de R$ 40 bilhões arrecadados pelo Fundo para a Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) na expansão de redes.
Os recursos vêm da parcela de 1% da renda total bruta das teles, mas são frequentemente contingenciados por questões fiscais e de regulamentação.
“Certamente, seria razoável supor que, se esse recurso tivesse sido usado corretamente, teria resolvido a situação de desertos digitais”, diz.
O professor Luca Belli destaca que também há falhas no mapeamento da rede existente para identificar espaços que poderiam ser ocupados por pequenas operadoras:
“O problema do regulamento de telecomunicações é que colocaram na cabeça que só tem as (teles) gigantes, mas há também as pequenas. Os gigantes só vão ter interesse no que for rentável para o negócio. Mas há micro e pequenos empreendedores que podem atuar com financiamento.”
Procurada pelo GLOBO, a Anatel afirmou que há mais de 5 mil cidades com cobertura 4G superior a 95% de suas áreas urbanas, o que demonstra a “evolução do serviço em todo o país, independentemente do tamanho do município”.
Sobre o Fust, a agência reforçou que houve alteração da lei em 2020, permitindo o uso da verba também para serviços de rede móvel, e afirmou que aguarda aprovação do Ministério das Comunicações para elaborar projetos de expansão da cobertura.