Os estudos clínicos no Brasil envolvendo a vacina da empresa chinesa Sinovac foram suspensos depois que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) identificou um “evento adverso grave” com um dos milhares de participantes do teste feito em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo.
Em nota, a Anvisa afirmou ter interrompido o estudo “para avaliar os dados observados até o momento e julgar o risco/benefício da continuidade do estudo”. Não há qualquer confirmação de que esse “evento adverso grave”, não detalhado pelo órgão, tenha sido causado pela vacina.
Paralisação semelhante já ocorreu no Brasil com a vacina da parceria europeia AstraZeneca/Oxford, mas depois se percebeu que não havia relação do evento com o imunizante.
Com a decisão da Anvisa, nenhum novo voluntário poderá ser imunizado no país com a vacina da Sinovac, chamada CoronaVac, até que essa análise seja concluída. Procurada pela BBC News Brasil, a fabricante chinesa ainda não comentou a decisão.
Vale lembrar que esse imunizante da Sinovac, já na fase final de testes e distribuído para milhares de pessoas na China, está no centro de uma disputa política entre o governo federal e o governo estadual de São Paulo.
O comunicado do órgão regulador foi divulgado horas depois de o governante paulista, João Doria, anunciar que iniciaria neste mês a chegada ao país de 160 mil doses desse imunizante, que depende da autorização da própria Anvisa para ser aplicado.
O que aconteceu com o paciente?
Ainda não está claro.
A Anvisa afirmou que o evento adverso grave ocorreu no dia 29 de outubro, mas não deu mais detalhes. Em nota, o órgão regulador cita uma resolução de 2015 para explicar os tipos de evento adverso grave, sem informar, no entanto, qual deles está relacionado à paralisação dos estudos no Brasil.
Entre eles estão incapacidade/invalidez persistente ou significativa, suspeita de transmissão de agente infeccioso por meio de um dispositivo médico e óbito. Questionada pela BBC News Brasil sobre informações mais detalhadas do ocorrido, a Anvisa afirmou: “Não podemos dar estes detalhes devido aos critérios de confidencialidade citados na nota”.
Também não está claro se o paciente em questão recebeu nos estudos uma dose real do imunizante ou um placebo.
Testes em estágio final para a vacina Sinovac também estão sendo conduzidos na Indonésia e na Turquia, mas nenhum desses países anunciou uma suspensão dos estudos até agora. Uma pausa em um ensaio clínico com vacinas não é incomum.
Em setembro, o Reino Unido interrompeu os testes de outra vacina contra a covid-19 depois que um participante teve uma suspeita de reação adversa. Os testes da vacina que está sendo desenvolvida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford foram retomados alguns dias depois, após os reguladores terem dito que era seguro continuar.
Em nota, o governo de São Paulo, por meio do Instituto Butantan, afirma que “lamenta ter sido informado pela imprensa e não diretamente pela Anvisa, como normalmente ocorre em procedimentos clínicos desta natureza, sobre a interrupção dos testes da vacina Coronavac”.
E, completa, “aguarda informações mais detalhadas do corpo clínico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária sobre os reais motivos que determinaram a paralisação”. Dimas Covas, chefe do Butantan, disse em entrevista à TV Cultura que a paralisação dos estudos estava relacionada a uma morte sem qualquer relação com a vacina.
“Em primeiro, a Anvisa foi notificada de um óbito, não de um efeito adverso. Isso é diferente. Nós até estranhamos um pouco essa decisão da Anvisa, porque é um óbito não relacionado à vacina. Ou seja, como são mais de 10 mil voluntários nesse momento, pode acontecer óbitos. Nesse momento, (o voluntário) pode ter um acidente de trânsito e morrer. Ou seja, é um óbito não relacionado à vacina. É o caso aqui. Ocorreu um óbito, que não tem relação com a vacina. Portanto, não existe nenhum momento (ou motivo) para interrupção do estudo clínico”, disse Dimas Covas na TV Cultura nesta segunda-feira (9).
O Butantan agendou uma entrevista coletiva nesta terça-feira, às 11h (horário de Brasília).
Disputa política entre Bolsonaro e Doria
Para além da análise sobre algum evento adverso grave que possa ter ocorrido com um dos participantes do estudo, a disputa política entre Bolsonaro e Doria já afetava o cronograma de estudos, análises e liberações ligadas à CoronaVac.
No último dia 21 de outubro, Bolsonaro (sem partido) usou sua conta oficial no Facebook para derrubar um acordo de cerca de R$ 2 bilhões do Ministério da Saúde para a aquisição de 46 milhões de doses da CoronaVac.
O acordo havia sido anunciado no dia anterior pelo ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, mas foi cancelado por Bolsonaro por causa de seu desacordo político com Doria.
Bolsonaro disse ainda que o governo federal não comprará nenhuma vacina oriunda da China, mesmo que seja aprovada pela Anvisa. “Da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso.”
Bolsonaro sofre pressão de militantes de direita da sua base de apoio: depois que o acordo do ministro da Saúde foi anunciado, passaram a circular em grupos de WhatsApp de apoiadores do governo teorias conspiratórias contra a vacina desenvolvida pela Sinovac.
Termos como “VaChina” e “Fraudemia” rapidamente se tornaram comuns em grupos de WhatsApp monitorados pelo site de checagens Aos Fatos —uma ferramenta desenvolvida pelo projeto acompanha atualmente 273 grupos de WhatsApp sobre o tema.
Em resposta, Doria afirmou que “a vacina do Butantan é a vacina do Brasil, de todos os brasileiros” e pediu a Bolsonaro que tivesse “grandeza para liderar o país” durante a pandemia, e que evitasse contaminar o combate à pandemia com uma disputa ideológica.
Vacinas distribuídas na China em caráter emergencial
Além dos testes de fase 3 realizados no exterior, a China também está distribuindo vacinas em caráter emergencial para milhares de pessoas dentro do país. Quatro candidatas receberam aval do governo chinês. Duas da Sinopharm, uma da CanSino (essa foi aplicada em militares) e uma da Sinovac.
Segundo Zheng Zhongwei, chefe da força-tarefa chinesa de desenvolvimento de vacina contra a covid-19 e integrante da Comissão Nacional de Saúde, o país traçou e aprovou um plano que inclui medidas para garantir que as vacinas distribuídas sejam reguladas e monitoradas.
“(O programa inclui) formulários de consentimento médico, planos de monitoramento de efeitos colaterais, planos de resgate, planos de compensação, para garantir que o uso de emergência seja bem regulado e monitorado”, disse Zheng à China Central Television (CCTV).
No mês passado, a BBC registrou centenas de pessoas na cidade de Yiwu na fila para receber a vacina depois que as autoridades aprovaram a distribuição para quem quisesse a injeção.
Segundo apurou Robin Brant, repórter da BBC na China, os imunizantes eram distribuídos para qualquer pessoa que estivesse disposta a pagar o equivalente a quase R$ 350 por duas doses (a segunda é aplicada 28 dias após a primeira).
Na fila, essas pessoas precisavam preencher formulários de consentimento dos possíveis efeitos colaterais de uma vacina que ainda não foi completamente aprovada. Para isso, recebiam ajuda de oficiais do Partido Comunista Chinês.
A Sinovac já divulgou que quase todos os seus funcionários e suas famílias receberam a vacina. Zhongwei, chefe da força-tarefa chinesa, afirmou que o programa emergencial de aplicação de vacinas está em expansão para evitar novas ondas da doença.
“A fim de evitar um possível ressurgimento da pandemia de coronavírus no outono e inverno, o número de pessoas que podem ser vacinadas será aumentado ainda mais para garantir que as cidades possam manter seu funcionamento normal quando uma crise de saúde ocorrer”, disse Zhongwei em entrevista à emissora CCTV.
Procuradas pela BBC News Brasil, nenhuma das fabricantes chinesas revelou quantas pessoas já foram imunizadas em caráter emergencial.
Mas Zhou Song, do China National Biotec Group (CNBG), um braço do grupo Sinopharm, afirmou neste mês à Rádio Nacional da China que centenas de milhares de pessoas receberam uma das vacinas da empresa e “nenhuma delas mostrou qualquer efeito adverso óbvio ou foi infectada”.