Aproximando-se da marca de 200 mil mortes por covid-19, o Brasil se deparou no início de dezembro com um novo número relativo à doença: o de casos de reinfecção.
De acordo com o Ministério da Saúde, até esta segunda-feira (21/12), o país tinha dois casos de reinfecção confirmados e pelo menos 58 casos suspeitos em análise.
O ministério define como reinfecção a situação de uma pessoa que recebeu positivo em um teste do tipo PCR para coronavírus e, 90 dias depois ou mais, novamente testou positivo — e, além disso, o sequenciamento do genoma das amostras apresentou duas cepas virais diferentes.
O novo coronavírus tem passado por quase duas mutações por mês, e estas geram subgrupos de vírus, as cepas.
Por isso o sequenciamento genético é tão importante para provar uma reinfecção: ele demonstra que se trata de duas infecções diferentes, e não do “ressurgimento” ou fortalecimento do mesmo agente infeccioso em um primeiro adoecimento.
Em um país que onde o coronavírus já adoeceu mais de 7,2 milhões de pessoas e tirou a vida de mais de 187 mil, como devemos encarar a confirmação das reinfecções? Que riscos elas representam para as pessoas individualmente e para os rumos da pandemia?
Confira as respostas obtidas com especialistas, órgãos governamentais e pesquisas publicadas recentemente.
1. Casos registrados no Brasil e no mundo
Por enquanto, os poucos dados existentes a nível mundial mostram que a reinfecção é rara.
A agência de notícias holandesa BNO News está reunindo e publicando diariamente dados globais sobre isso — até esta segunda-feira (21/12), a plataforma Covid-19 Reinfection Tracker registrava 30 casos confirmados de reinfecção no mundo e 2.049 sob suspeita.
Dos 30 casos confirmados, o intervalo médio entre a primeira e a segunda infecção foi de 80 dias. Um deles resultou em morte.
O primeiro caso confirmado no mundo, em agosto, foi o de um morador de Hong Kong de 33 anos. Ele teve covid-19 primeiro em março, e depois em agosto — foram 142 dias de intervalo. Na primeira ocasião, ele teve sintomas leves; na seguinte, foi assintomático e só ficou sabendo da doença pois foi testado no aeroporto. Suas amostras foram submetidas a testes PCR e ao sequenciamento genômico.
Já no Brasil, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de reinfecção em 10 de dezembro. Uma profissional de saúde de 37 anos, moradora de Natal (RN), teve sintomas leves e PCR positivo em junho e outubro. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde Pública do RN, ela passa bem.
Depois, foi confirmado um segundo caso no país, de uma auxiliar de enfermagem de Fernandópolis (SP) de 41 anos. Ela teve sintomas em ambas infecções e, segundo o secretário de saúde do município, Ivan Veronesi, passa bem.
Vários munícipios e Estados estão divulgando episódios de reinfecção que não foram computados ainda pelo ministério — que só o faz após a análise por seus laboratórios nacionais de referência, conforme fez para os casos de Natal e Fernandópolis.
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Entretanto, de acordo com Paola Cristina Resende, pesquisadora do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), muitos casos de reinfecção nunca serão registrados. Para começar, muitas pessoas no país nunca fizeram testes PCR — quem dirá dois, e com armazenamento satisfatório.
“Para realizar o sequenciamento genômico, é importante uma boa qualidade da amostra, com carga viral suficiente. Às vezes, essa primeira amostra coletada lá em abril, por exemplo, foi armazenada em um freezer que varia muito a temperatura, porque não tinha mais freezer (adequado); ou foi deixada em temperatura ambiente em algum momento. Isso pode degradar o material genético viral — é fácil ocorrer a deterioração deste material”, explica Resende, que atua diretamente com o sequenciamento genético do vírus.
“É uma realidade do nosso país a dificuldade de armazenar muitas amostras. Muitas delas estão sendo descartadas.”
Para os casos de amostras em que há qualidade satisfatória e que são encaminhadas para os laboratórios nacionais para confirmação da reinfecção, o intervalo entre a primeira infecção e a segunda deve ser de no mínimo 90 dias — mas segundo a pesquisadora, esse número ainda está em debate.
Isto porque já há pelo mundo relatos de reinfecções mais longas e curtas — no levantamento da BNO News, há casos com intervalo que variam entre 10 dias e 185 dias.
2. Os riscos — individuais e coletivos
Outro indicador para o qual não há um padrão é o de gravidade na comparação entre a primeira e segunda infecção.
“Há relatos publicados de reinfecção mais grave do que a primeira vez, mas também casos como o primeiro registrado, assintomático (na segunda infecção, em Hong Kong)”, aponta a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
De fato, um dos primeiros estudos que compilou casos de reinfecção no mundo, publicado em outubro no periódico científico The Lancet Infectious Diseases , mostrou quadros muito variados — desde um homem de 25 anos que teve sintomas leves na primeira vez e na segunda precisou ser hospitalizado nos EUA, a uma mulher de 51 que teve manifestações leves em ambos os casos na Bélgica.
Stucchi lembra que, com sintomas ou não, um paciente reinfectado pode continuar transmitindo a doença para outras pessoas normalmente.
Entretanto, por serem aparentemente raras, especialistas acreditam que as reinfecções não serão capazes de protagonizar algo como uma segunda ou terceira onda de covid-19 por si só — até agora, estas estão sendo capitaneadas por novos casos.
3. O enigma da imunidade
“Se há algo ainda misterioso ou que a gente tem pouco conhecimento sobre a covid-19 é em relação à imunidade. Há perguntas que não foram ainda adequadamente respondidas, como por exemplo por que quem tem quadro leve pode não desenvolver anticorpos”, diz a professora da Unicamp.
E, nos casos de reinfecção, esse parece ser justamente o caso.
“Quem tem quadro leve às vezes não faz nem proteção contra a doença, ou se faz, faz uma quantidade pequena de anticorpo que dura muito pouco tempo”, explica a infectologista, apontando que os casos de reinfecção têm acontecido em geral com pessoas saudáveis, sem deficiências anteriores na imunidade (pessoas imunossuprimidas), por exemplo.
Nosso sistema imunológico se defende em duas frentes.
A primeira está sempre pronta para agir, assim que um agente estranho é detectado no corpo: é a resposta imune inata, que inclui as células brancas e substâncias que levam à inflamação no corpo.
Mas esta é uma estratégia “genérica”, diferente da resposta imune adaptativa, que se adequa a um invasor específico — como o coronavírus. Um dos soldados dessa frente são os linfócitos T, capazes de atacar apenas as células infectadas pelo vírus.
Acontece que o desenvolvimento dessa resposta adaptativa toma tempo — alguns estudos referentes à covid-19 sugerem que a produção de anticorpos começa após 10 dias. Por isso, há dúvidas se pessoas assintomáticas ou com sintomas leves chegam a desenvolver este tipo de estratégia.
Caso seja de fato desenvolvida, a imunidade adaptativa pode deixar uma memória no corpo que evitará infecções como aquela no futuro.
Essa memória dura mais ou menos, a depender da doença. O sarampo é altamente memorável — uma infecção pelo vírus é capaz de gerar imunidade para toda a vida. Por outro lado, o vírus sincicial respiratório (VSR) pode infectar crianças várias vezes no mesmo inverno.
Não se sabe ainda quanto tempo dura a imunidade para o Sars-CoV-2, mas outros seis coronavírus podem dar uma pista. Quatro deles produzem sintomas de um resfriado comum e têm uma resposta imune de vida curta, com pacientes podendo ser reinfectados um ano depois.
Já um estudo do King’s College London sobre o novo coronavírus sugeriu que os níveis de anticorpos contra ele diminuíram ao longo de três meses.
Para Paola Cristina Resende, tudo indica que o problema da reinfecção está mais relacionado à resposta imunológica do paciente do que com o vírus em si.
“A reinfecção não se dá tanto pelo vírus e o quanto ele evolui, mas pelo indivíduo e sua capacidade de produção de anticorpos contra o vírus”, diz a pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz.
“A quantidade de vírus circulando na população é grande, e a possibilidade de um indivíduo que já teve o coronavírus ser exposto (ao patógeno, novamente), também.”
4. Lições
Para as entrevistadas pela BBC News Brasil, ainda que raras, as reinfecções reforçam uma lição para todos.
“Muita gente que acha que já pegou covid-19 e está imune, e que isso seria como um passaporte para largar todas as medidas preventivas. A confirmação de casos de reinfecção (no Brasil) mostra que não: enquanto houver circulação do vírus, precisaremos manter as medidas preventivas e vai demorar um pouco mais para voltarmos à nossa vida normal”, destaca Resende.
Raquel Stucchi concorda.
“Quem teve e quem não teve covid-19 deve continuar usando máscaras, evitando aglomerações, entre outras medidas preventivas”, conclui a infectologista.
*Com informações de André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo; e de James Gallagher, da BBC News
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