OAB/DF promove diálogo sensível sobre filhos de mães e pais neurodiversos: confira as dicas de profissionais especializados

A Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), por meio da Comissão de Direito das Famílias, realizou um evento de profunda relevância, que convidou à reflexão sobre os desafios e aprendizados de ser filho de mães e pais neurodiversos – abrangendo desde o autismo até o Alzheimer e a demência. O encontro, que se propôs como um espaço de escuta, troca e acolhimento, abordou temas como amor, cuidado e resiliência, contando com a participação de advogadas que vivem essa realidade, além de contribuições valiosas de uma psicóloga e uma geriatra.






A mesa de debates foi apresentada pela dra. Marcela Furst, presidente da Comissão de Direito das Famílias da OAB/DF. Em sua fala de abertura, ela contextualizou o tema: “Quando a gente fala de mães atípicas, em geral, acaba que temos uma inversão, porque nos referimos a quem tem filhos neurodivergentes. Assim, na verdade, os filhos são os atípicos. Mas quando a gente vem dizer que o debate é sobre pais atípicos, aí de fato são questões sobre os pais que são atípicos (mãe ou pai).”
A mediadora da mesa destacou a importância do tema para a advocacia: “A pessoa pode nascer neurodivergente e pode, ao longo da vida, tornar-se, com o envelhecimento alguém neurodivergente, por exemplo. Esse é um tema que muita gente não se preocupa, mas, se não morrermos cedo, vamos envelhecer. E quanto mais a expectativa de vida cresce, mais também nós temos chances, ou não, de desenvolvermos alguma coisa. Para nós, advogadas e advogados, esse tema envolve questões importantes sobre o direito das pessoas e nosso trabalho em casos como os do ramo previdenciário. Então, precisamos ter essa visão, e eu acho que ainda falta, infelizmente, para alguns profissionais perceber isso. O que faz a diferença é termos profissionais que sejam atentos e tenham essa percepção, esse olhar.”
Experiências que moldam o cuidado


A primeira a falar, enquanto palestrante, foi a advogada Rayeny Kelly. Ela iniciou os depoimentos da noite compartilhando sua vivência como filha de uma mãe com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 1 de suporte. Ela descreveu uma infância marcada por um afeto expresso de maneiras incomuns, diferente dos abraços e carinhos tradicionais, mas por meio de ações práticas como a preparação de uma comida especial ou uma proteção intensa.
“A gente fala muito sobre os filhos autistas, a dificuldade das mães, dos pais, do tutor ali. Mas os filhos que cuidam dos pais, dos avós, dos tios, têm uma demanda que não há discussão. E eu acho que a discussão tem que começar dentro da nossa casa. Então, trazer isso para a OAB/DF, para mim, é um orgulho imenso”, declarou Rayeny, ressaltando a relevância da pauta.
Ela narrou os questionamentos que se fez desde a infância sobre a “diferença” de sua mãe em comparação às outras. O diagnóstico tardio, já na fase adulta de Rayeny, revelou o autismo “invisível” de sua mãe e o esforço que ela empreendia para se adaptar. “Ser filha de uma mãe neuroatípica foi diferente. Na minha casa não tinha tantos abraços, tantas palavras de afeto direto. Mas tinha um afeto diferente. Era um afeto em forma de bolo no forno, em forma de cuidado extremo, em forma de proteção extrema”, pontuou.
A palestrante também abordou a rigidez e a necessidade de previsibilidade da mãe, que exigia que Rayeny seguisse um “roteiro” em suas interações. Ela destacou que aprendeu a cuidar de sua mãe precocemente, percebendo sinais de desconforto e preparando-a emocionalmente para eventos futuros. O diagnóstico de TEA da mãe veio acompanhado da constatação de ela também ter TDAH, restrições alimentares, depressão, ansiedade e dependência emocional, condições que, segundo Rayeny, surgiram da ausência de tratamento ao longo da vida.
Rayeny alertou para a carência de debates e apoio para adultos com TEA, especialmente o nível 1 de suporte, que é frequentemente ignorado pela sociedade. Ela detalhou as dificuldades com planos de saúde e a falta de acesso a atendimento e medicação na rede pública, que a levam a priorizar a compra de medicamentos. A advogada também enfatizou a importância de cobrar o Estado por melhorias nas leis e normas, como a isenção de IPVA, que muitas vezes não se materializam.
Para vencer obstáculos, de modo prático, contou que incentiva a conexão social da mãe e respeita os limites dela, promovendo inclusão e autoconhecimento.
Segundo Rayeny, a camuflagem social (mascaramento) do autismo para quem é nível de suporte 1, provoca muitos desgastes e causa e a necessidade de compreensão por parte do cuidador. “O diagnóstico pode levar a um luto, um estado de raiva, de negação”, advertiu, citando Oliver Sacks ao concluir que “ser neurologicamente diverso é simplesmente uma das muitas variações da natureza humana”, mas compreender isso sendo filho, é uma experiência muito particular.
No entanto, Rayeny lembrou, ao final do evento, que sua mãe segue sendo a mãe, e ela a filha – e uma filha que tem orgulho de a mãe ser uma advogada capaz e, inclusive, autora de uma publicação disponível pela Amazon: “Direito das Pessoas Autistas de A a Z”, de Silvanusa Rodrigues da Rocha Cruz (sua mãe).
A dra. Marcela Furst ponderou a respeito dessa fala de Rayeny, destacando a “importância da representatividade e da conscientização sobre o autismo em adultos”. Do público, o professor Cristian Martins, membro da Comissão de Direito das Famílias e da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo da OAB/DF, complementou a discussão, enfatizando a necessidade de educação e compreensão na sociedade em relação à neurodiversidade e às deficiências, especialmente diante da “falta de acesso a direitos e serviços para pessoas com deficiência no Brasil”.
A Inversão de papéis: o cuidado na demência


A advogada Cejana Caiado trouxe o depoimento comovente de sua jornada como filha cuidadora de sua mãe, diagnosticada com uma síndrome semelhante ao Alzheimer há mais de 12 anos. Ela descreveu a progressão da doença, que levou a mãe à perda de memória, à desorientação, ao declínio cognitivo, aos delírios e total dependência.
“Você já se imaginou, de repente, virar cuidador ou cuidadora do seu pai ou da sua mãe? E nessa função, na inversão total de papéis, passar a ter a responsabilidade de alimentar, vestir, trocar, gerir a vida financeira e patrimonial dele ou dela?”, questionou Cejana, traduzindo a magnitude da experiência.
Os primeiros sinais, que inicialmente apareceram, no caso da mãe de Cejana, foram “esquecimentos pontuais”, e incluíram dificuldades com documentos de inventário, a mãe se perdendo em um posto de gasolina e erros no preenchimento de cheques. O diagnóstico, revelado após uma confissão da mãe sobre dificuldades financeiras, confirmou um processo de demência progressivo devido a pequenas isquemias cerebrais.
Cejana narrou o momento impactante da revelação do diagnóstico pelo neurologista: “Na hora que ele pegou a imagem da ressonância magnética, e colocou em cima da mesa… e falou assim: ‘você está vendo esses pequenos pontinhos brancos aqui na imagem?’ Eu falei, sim, e o que se trata? Ele falou: ‘são pequenas isquemias… as células cerebrais da sua mãe estão entrando num processo de degeneração progressivo. Em português claro, ela está num processo de demência progressivo’. Naquele momento, foi como se uma bomba tivesse caído dentro da sala. Ninguém conseguia falar mais nada, todo mundo ficou estático, inclusive e principalmente ela (minha mãe). Eu vi que ela estava com a cabecinha baixa, eu então peguei na mão dela, apertei, ela levantou a cabeça com os olhos marejados e ela só conseguiu dizer: ‘cuida de mim!”
A partir desse dia, as vidas da mãe de Cejana, dela e de toda a família mudaram, radicalmente, exigindo cuidadores 24 horas e uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde. Cejana compartilhou um episódio doloroso de delírio em que sua mãe a acusou de roubo, gerando um abalo emocional intenso. Buscando apoio, ela encontrou a ABRAz (Associação Brasileira de Alzheimer), onde percebeu que as dificuldades que enfrentava eram comuns a muitas famílias.
Um dos pontos mais reflexivos de seu depoimento foi a pergunta “quem cuida de quem cuida?” Quando percebeu que, por oito anos, havia negligenciado a própria saúde, Cejana tomou a decisão mais difícil: colocar a mãe em uma casa de repouso, enfrentando grande preconceito. Contudo, ela afirmou que “lá ela está muito mais bem cuidada. Lá ela tem assistência médica 24 horas. Ela tem uma alimentação balanceada feita por nutricionistas. Vários tipos de terapia ocupacional em grupo e individual. Ela tem missa, tem festas, tem rodas de canto, tem a socialização com outros idosos.” Cejana concluiu que, apesar de tudo, o relacionamento com a mãe se transformou positivamente, com mais troca, carinho e respeito. Foi preciso vencer a culpa interna, o preconceito e superar julgamentos alheios.
A compreensão psicológica e geriátrica


Cecilia Muraro, mestre em Psicologia, trouxe uma perspectiva técnica sobre neurodivergência e parentalidade. Ela enfatizou que “a neurodivergência é um tema relativamente novo e importante, impactando tanto pais quanto filhos”, e que a gravidez e os cuidados perinatais apresentam desafios únicos para mulheres neurodivergentes devido a mudanças sensoriais e de rotina.
A psicóloga alertou que a falta de informação sobre neurodivergências entre profissionais de saúde pode levar a julgamentos e dificuldades no acolhimento. Filhos de pais neurodivergentes podem enfrentar imprevisibilidade e dificuldades na organização, dada a realidade dos desafios nas funções executivas dos pais. Ela reforçou que o diagnóstico tardio pode trazer alívio, mas também sentimentos de culpa e ansiedade. Cecilia Muraro ressaltou que a regulação emocional é fundamental na parentalidade neurodivergente, e que a dificuldade para a criança reside na frustração de expectativas, que “precisa vencer as frustrações para manter o equilíbrio familiar.”


Por fim, a dra. Alexandra Barreto Arantes, médica geriatra e paliativista, abordou os cuidados e a neurodiversidade em idosos. Ela observou a escassez de estudos sobre pais neurodiversos e idosos e a importância de desmistificar o envelhecimento, um processo natural de diminuição da proteção dos órgãos. “Esquecer não é normal no envelhecimento”, afirmou, destacando a necessidade de um envelhecimento saudável.
A médica salientou que o Brasil possui uma das maiores prevalências de demência no mundo, com 40% dos fatores de risco sendo evitáveis. Ela explicou que demência é um comprometimento cognitivo que interfere nas atividades diárias e que o diagnóstico precoce é crucial para que o paciente mantenha a capacidade de decisão.
“O Brasil tem uma das maiores prevalências de demências no mundo. Entre 6 a 17% das pessoas idosas têm demência no Brasil”, pontuou a geriatra, que também descreveu as dificuldades disso para a “geração sanduíche”, muitas vezes composta por mulheres que cuidam de pais idosos e filhos dependentes. “É emocionalmente difícil; financeiramente… e no físico… então, precisamos encontrar o momento de falar com cada um em cada situação. É preciso vencer preconceitos.”
Dra. Alexandra concluiu aconselhando a busca por informações seguras, profissionais qualificados (verificando o cadastro no Conselho Federal de Medicina) e uma rede de apoio sólida, reconhecendo a dificuldade das famílias em aceitar o diagnóstico, muitas vezes marcado pela negação.


Este evento da OAB/DF foi um marco na promoção de um diálogo necessário e humanizado, evidenciando a importância de se debruçar sobre as complexidades das famílias neurodiversas e o papel fundamental da advocacia e de outros profissionais no apoio a essas realidades.
Fotos: Roberto Rodrigues

