Com famílias populosas e vizinhanças generosas, algumas periferias brasileiras contrariam a individualidade dos centros urbanos e vivem na prática o ditado que diz: é preciso uma vila inteira para educar uma criança.
Em Embu-Guaçu, cidade da Grande São Paulo, a vila responsável por criar nove filhos do mesmo sangue foi a que, em alguns punhados de dias, perdeu três deles assassinados de forma brutal . Ricardo, Vinícius e Rafael Inocêncio, irmãos, jovens, negros e periféricos, colecionavam sonhos, amigos e histórias interrompidas pela violência.
Membros de uma família de nove irmãos, os três nasceram e foram criados no Vale Florido , região rural da cidade de quase 70 mil habitantes. As raízes dos rapazes foram fincadas ali muito antes disso, quando a matriarca Vera Lúcia – hoje silenciada pela tristeza da perda inesperada – ainda era criança.
“Conheço a mãe deles, nós brincávamos de boneca. Vi eles nascerem”, conta Lourdes das Dores, que aos 57 anos lembra todos os dias dos garotos que acolheu na própria família.
A vida de tantas pessoas em uma casa de três cômodos era cheia de malabarismos financeiros que obrigaram todos a trabalharem cedo, a maioria na roça. O senso de coletividade alimentado na família se tornou contagiante e seguiu cada um deles até o fim da vida. Hoje, em vídeos, fotos, ou lembranças narradas, a bondade é a característica marcante na memória dos que ficaram.
Rafael
Raul Rafael Correia Inocêncio, de 29 anos, era pai de duas meninas. Com a responsabilidade de uma paternidade adquirida cedo, criava a mais nova, de cinco anos, sozinho, com o salário de ajudante geral de uma oficina mecânica.
Menino mais velho da família e quarto a nascer na casa de três cômodos, era considerado “mimado” pelas irmãs, um rótulo perdido ao longo dos anos. Aos 13 saiu das asas da mãe para morar com a mais velha em Guarulhos e decidiu, mesmo sem precisar, ajudar nas despesas.
“Ele saia de casa três da madrugada para pegar reciclagem. Sempre foi o instinto dele trabalhar e trabalhar. Desde então ele nunca mais parou de trabalhar”, lembra Cíntia, sua irmã.
Como muitos jovens de 29 anos, Rafael tinha uma infinidade de objetivos para a longa estrada que sonhava percorrer. O maior deles, confidenciado às irmãs, era a comemoração de 15 anos da filha que criava sozinho. Como um pai orgulhoso, veria a menina vestida de princesa e teria a certeza de que chegou ao topo do mundo.
Vinícius
Aos 20 anos, Vinícius Fernando Correia Inocêncio era um sobrevivente. Ao nascer, sexto filho da linhagem dos Correia Inocêncio e segundo menino da casa, passou 18 dias internado na UTI de um hospital público por problemas no pulmão.
As irmãs mais velhas lembram bem da incerteza sobre a vida de um ser tão pequeno, que contrariando as estatísticas médicas vingou, cresceu e antes de morrer estava “partindo para o progresso”, como gosta de lembrar o irmão mais novo, Luan, de 16 anos. Com trabalho fixo na roça, ajudava a pagar as contas de casa, onde a mãe ainda criava os dois filhos mais novos.
“Quantas vezes vi o Vinícius chegar cansado na hora do almoço, porque ele trabalhava próximo a um comércio que eu tinha. Ele ia lá cabisbaixo ‘Rê, vê um refri aí para eu almoçar. Rê, me vê uma bolacha ai para eu comer que não quero almoçar comida’, e eu servia com o maior amor, com o maior carinho”, lembra a irmã Renata.
Trabalhador, – termo tantas vezes utilizado por famílias da periferia para justificar o merecimento do bem tão primordial que é a vida – era o rapaz de muitos amigos e sorrisos. Não admitia que ninguém estivesse triste perto dele.
Firmava, quase sempre em tom de brincadeira, compromissos sérios para o futuro. Um dos principais era um pacto com Daniela, amiga de infância: ele seria padrinho de casamento dela e ela madrinha do casamento dele. Lembrava disso em todas as oportunidades possíveis.
Ricardo
Ricardo Davi Correia Inocêncio tentava alcançar a maioridade, que seria comemorada no dia 14 de agosto. Quando estava com os amigos, costumava falar menos do que o irmão Vinícius, que tinha como espelho. A timidez, porém, não tinha espaço no meio da família. Em reuniões com parentes, ele perdia as amizades, mas não perdia a piada.
Fazia sucesso principalmente entre os sobrinhos mais novos, seja pelo jeito brincalhão ou porque poucos anos antes de morrer ainda brincava como menino pelas ruas de Embu-Guaçu.
Criado na roça, brincava na rua até ser obrigado a voltar para casa. Tinha a ambição pessoal de ensinar a irmã Tainã a nadar. “A gente ia para o rio mesmo sem eu saber nadar, e olha que ele tentou me ensinar várias vezes”, lembra a jovem, hoje com 24 anos.
O jovem de poucas palavras com os amigos ainda estudava e queria ser MC. Prometeu à irmã que por meio da música daria uma vida melhor para a mãe e para os mais novos da família. Teve os sonhos roubados aos 17 anos.
A justiça divina
A morte repentina dos três jovens, banalizada por tantos que vivem longe das periferias brasileiras, é lamentada e lembrada pelos colegas com um misto de fé e esperança de um lugar melhor para os que partiram. Nas redes sociais, a lembrança de momentos felizes se mistura com a incredulidade de não poder tê-los por perto novamente.
A imagem daqueles que acabaram de alcançar a vida adulta velando o corpo de vítimas de violência tão jovens quanto eles foi atormentadora para Cíntia, que no funeral dos irmãos mais novos viu quantos amigos eles cativaram ao longo da vida.
Na Grande São Paulo, que registrou no mês de julho o maior número de homicídios semestrais em sete anos, porém, a cena não é incomum. Nos cinco primeiros meses de 2020, jovens entre 20 e 24 anos foram a maioria das vítimas de homicídio, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
Os irmãos dela, assassinados no meio da rua enquanto conversavam com amigos, se encaixam em muitas das estatísticas da violência na região: eram homens, pardos (segundo declaração de documentos) e jovens.
A esperada revolta diante do ocorrido quase não atinge amigos e familiares que seguem a vida pacata na vila que criou os nove irmãos de Embu-Guaçu. Nas lembranças diárias, comentadas nos grupos de WhatsApp, paira a certeza de que “Deus sabe de todas as coisas”. Enquanto tentam se adaptar, usam a fé e as saudades para eternizá-los.
Os crimes e as investigações
Sem desafetos, pouco se sabe sobre a motivação da morte dos três. O mais velho, Rafael, foi encontrado asfixiado após passar três dias desaparecido. Os dois mais novos, 40 dias depois do irmão, estamparam brevemente notícias ao serem vítimas de uma chacina enquanto conversavam com amigos ao redor de uma fogueira na rua da única delegacia de Embu-Guaçu. O crime completa um mês nesta quinta-feira (30).
Segundo boletim de ocorrência, os rapazes foram abordados por dois homens que saíram de um carro se identificando como policiais e dispararam a queima-roupa nos jovens rendidos. Além de Vinícius e Ricardo, outro homem, identificado como Edilson da Silva Rosa, de 21 anos, também morreu no crime. Outras três pessoas ficaram feridas.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSPSP) afirmou que o caso ainda é investigado pela Delegacia de Embu-Guaçu com apoio do Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa da Delegacia de Taboão da Serra.
Um suspeito do crime foi preso após ser reconhecido por testemunhas e diligências ainda são feitas pela polícia em busca dos outros envolvidos. A suspeita é de que os mesmos homens que mataram Rafael tenham envolvimento na morte dos jovens.
Apesar do pedido da reportagem, a SSP não passou o contato do delegado responsável pelo caso.