Quando a nonagenária Margaret Keenan recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19 , oito de dezembro de 2020 entrou para a história. Residente de uma casa geriátrica na Inglaterra, Margaret usava uma camiseta natalina e uma máscara cirúrgica. Ter iniciado a vacinação em massa em dezembro, mesmo que ainda para poucas pessoas, é uma vitória inconteste da ciência. O caminho é longo, a máscara que Margaret usou hoje nem tão cedo deve ser abandonada, mas a vacinação é o início do fim da pandemia que parou o mundo e ceifou mais de 1,5 milhão de pessoas.
A vacina da Pfizer, que Margaret recebeu, é uma das sete atualmente aprovadas por algum país para uso limitado. No caso do Reino Unido, os primeiros da fila são idosos com mais de 80 anos e profissionais de saúde. Todas as outras seis vacinas têm aprovação emergencial na China, nos Emirados Árabes ou na Rússia. França e Alemanha já têm cronogramas de vacinação iniciando nas próximas semanas. Os Estados Unidos vivem a expectativa de aprovação de uma vacina ainda neste ano.
Diante de tudo isso, a pergunta inevitável é: e o Brasil? Na semana passada, o Ministério da Saúde apresentou um incompleto plano de vacinação contra a Covid-19: começaria somente em março de 2021 e apenas com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica AstraZeneca. Vacinas adiantadas como as da Pfizer e a da Sinovac, desenvolvida com apoio do Instituto Butantan, ficaram de fora.
O plano foi bastante criticado. E agora o Ministério da Saúde afirma que está em negociação para a compra de 70 milhões de doses com a Pfizer. O acordo pode ser fechado ainda nesta semana, mas o governo não informou em que mês de 2021 todas as doses estariam disponíveis, nem quanto irão custar. Todas as vacinas até agora são de duas doses por pessoa.
Para Denise Garrett, médica e pesquisadora do Instituto Sabin de Vacinas e que trabalhou mais de de 20 anos no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, um país do tamanho do Brasil deve investir em vários tipos de vacinas. “É realmente lamentável o que está acontecendo. O Brasil deveria correr atrás de acordos . Não existe isso de que o Brasil não tem infraestrutura. O Brasil é um país de recursos. A vacina da Moderna é para ficar armazenada em -20 graus, não é nenhum absurdo. A da Pfizer é -70 graus. Pode não funcionar para o interior do Amazonas, mas é possível em muitas capitais”, diz.
O tema mais polêmico é a não inclusão da vacina da Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, rechaçada pelo presidente Bolsonaro e apoiadores como a “vacina chinesa”. Rafael Dhalia, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Instituto Aggeu Magalhães, questiona se os critérios são políticos ou científicos. “Das 26 vacinas oferecidas pelo Programa Nacional de Imunização (PNI) mais da metade são produzidas pela Fiocruz e o Instituto Butantan. São duas instituições centenárias e bastante respeitadas. Não há motivos para considerar apenas uma delas como fornecedora”, diz Dhalia, lembrando que tanto a vacina da Sinovac quanto a de Oxford ainda precisam passar pelo processo de aprovação pelas agências reguladoras.
Falta de coordenação pode ser caótica
São Paulo lançou nesta semana um plano próprio de vacinação, com data de início em 25 de janeiro. O Paraná tem um acordo com a Rússia e a Sputnik V. A Bahia falou em comprar freezers para armazenar as vacinas de RNA, que exigem baixíssimas temperaturas. A Paraíba afirmou que vai entrar em negociação com São Paulo para receber as vacinas do Butantan. Estaria o Programa Nacional de Imunização (PNI) em risco?
De um lado, está a desconfiança em relação ao Governo Federal, que lavou as mãos e jogou para os estados a responsabilidade em conter a pandemia. Sem coordenação nacional , já são quase 180 mil mortes, colocando o Brasil como o segundo país com mais fatalidades pelo coronavírus. Do outro, os transtornos que uma vacinação em massa fragmentada entre os estados pode causar.
“É lamentável que os estados tenham que ir atrás de vacinas. Mas isso ocorre pela falta de liderança do Governo Federal , já demonstrada pelo descontrole da pandemia. E também é algo inadmissível o que o [governador] João Doria fez em São Paulo: você ter um político marcando uma data de vacinação sem nem ter enviado para a Anvisa os resultados dos testes ou o pedido para uso emergencial. Fica a pressão e gera ansiedade na população. O que precisamos agora é transparência. A população precisa ver os dados e saber se a vacina é eficaz e segura”, diz Garrett. O Instituto Butantan afirma que até o dia 15 deste mês a Sinovac deve apresentar o resultado dos testes.
Para Dhalia, é necessário que o Governo Federal assuma suas responsabilidades . “Temos um PNI antigo e eficiente, que fornece anualmente 300 milhões de doses não só de vacinas, mas também de alguns imunoterápicos. É, porém, um programa que vem recebendo menos investimentos com o passar dos anos, e não apenas nesse governo. Acho bastante temerária uma vacinação sem articulação total do Governo Federal”, diz Dhalia. “Alguém pode se vacinar em São Paulo com a do Butantan na primeira dose, que é uma vacina de vírus inativado, e achar que pode tomar a segunda dose da Sputnik V, que usa um adenovírus. Não há estudos sobre os efeitos disso”, diz.
Em coletiva no último dia 3, ao ser questionado pela Marco Zero, o secretário estadual de Saúde André Longo afirmou que Pernambuco não pretende comprar por conta própria nenhuma vacina. E que acredita que o PNI vai cumprir seu papel.
A impressão, porém, é que o Brasil já perdeu o bonde para as primeiras levas de vacinações.
E as vacinas em si não são o único problema. Seringas, agulhas, rolhas, frascos, freezers, treinamento ou contratação de pessoal. Até agora, não foi anunciada nenhuma grande compra pelo Governo Federal, mesmo com alertas tendo sido feitos há meses. “Não dá para o Ministério da Saúde ficar vendo as coisas acontecerem e dizendo “não é comigo”. São mais de 200 milhões de pessoas, que usariam, por baixo, sem considerar as perdas, 400 milhões de seringas. A capacidade do Brasil é de 50 milhões de seringas por mês, em carga máxima. O edital de compra ainda não foi aberto”, critica Dhalia. “O governo tratou a Covid-19 como uma “gripezinha” e nunca colocou a prevenção como prioridade. Agora, está conduzindo a discussão sobre vacina com morosidade e sem organização”, afirma.
Governadores fazem pressão
Na manhã da última terça-feira (8), o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello , se reuniu com governadores. Afirmou que a Anvisa deve demorar 60 dias para aprovar qualquer vacina e ainda se equivocou ao justificar a vacinação somente em março ao dizer que a fase 3 da vacina de Oxford/AstraZeneca seria divulgada até o fim do mês. O estudo já saiu, na última terça-feira, na prestigiada revista The Lancet.
Os governadores solicitaram a reunião para cobrar celeridade na vacinação. “Está na lei. Se outro país já aprovou a vacina, a Anvisa tem 72h para aprovar”, afirmou o governador de Goiás Ronaldo Caiado (DEM). É um trecho da lei 13.979/2020 que havia sido vetado por Bolsonaro, mas o Congresso derrubou o veto.
Os governadores querem que o Ministério da Saúde assuma a responsabilidade pela vacinação em todo o território nacional. “Não deve ser uma corrida maluca entre os estados. Nem todos têm o poder aquisitivo ou a logística para fazer uma vacina chegar ao Brasil”, disse Caiado, para repórteres que cobriram a reunião, parcialmente presencial, em Brasília.
Participando virtualmente, o governador de São Paulo João Doria (PSDB) discutiu com Pazuello. Doria perguntou se a não inclusão da Coronavac no plano brasileiro era uma decisão ideológica, política ou mera falta de interesse em disponibilizar mais vacinas. O ministro tergiversou e falou sobre o Covax, consórcio de vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) do qual o governo brasileiro adquiriu a menor cota possível, de 42 milhões de doses.
A falta de celeridade, estratégia ou interesse do Governo Federal pode acabar na Justiça ou no Congresso. Na última segunda-feira (7), o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia (DEM), afirmou que se o governo não refizer o plano, poderá ser elaborado um à parte no Congresso . Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão, já avisou que solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que libere para o Brasil as vacinas aprovadas no exterior o mais rápido possível e não no prazo de 60 dias defendido por Pazuello.
Pelo menos mais um ano de máscaras e distanciamento social
“Ninguém está seguro enquanto todos não estiverem seguros”. Esse é um mantra que o pesquisador Rafael Dhalia repete desde o início da pandemia. “Não adianta a França estar com sua população imunizada , se no Brasil a pandemia está descontrolada. Cerca de 20% das pessoas não conseguem desenvolver imunidade para vacinas. Basta uma pessoa com o vírus chegar clandestinamente num país para que uma nova leva de infecções ocorra”, diz.
Médico infectologista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Paulo Sérgio Ramos lembra que medidas como distanciamento social , ventilação de ambientes, uso de máscaras e higienização das mãos são as principais armas que temos hoje contra o coronavírus. E que deveremos utilizá-las por algum tempo ainda.
“Somente em 2022 é que possivelmente teremos uma população vacinada que ofereça realmente proteção coletiva”, diz. “É necessário também que se invista em novos medicamentos, novos antivirais. Tudo que vem sendo pesquisado nesses dez meses de pandemia não teve impacto em um desfecho favorável da Covid-19. O único medicamento que teve certa eficácia foi o corticoide dexametasona dado na veia, mas exclusivamente em pacientes com a forma grave”, diz.
Apesar do caminho para a vacinação em massa ser longo, especialmente aqui no Brasil, sobram motivos para otimismo. Nenhuma vacina eficaz e segura foi desenvolvida tão rapidamente – e temos 13 delas na fase mais adiantada de testes. Estamos mais perto que longe de uma convivência menos traumática com o coronavírus. Mas, até lá, é preciso ação dos governos e responsabilidade dos cidadãos.