InícioMULHERAo contrário do que pensam, luta antigordofobia tem mais de 50 anos

Ao contrário do que pensam, luta antigordofobia tem mais de 50 anos

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Maju Jimenez, Ellen Valias, Jéssica Balbino, Agnes Arruda, Thais Carla e Mirani Barros

Comemorado nesta sexta-feira (10), o Dia de Luta Contra a Gordofobia ou Dia de Visibilidade à Luta Antigordofobia busca conscientizar a sociedade sobre a importância do respeito às pessoas gordas. Mesmo sendo maioria na população brasileira – 56%, segundo o Ministério da Saúde – gordos são negligenciados e têm direitos e acessos negados diariamente na sociedade.

Neste dia do gordo, conversamos com ativistas e pesquisadoras para entender quais são, atualmente, as principais pautas do movimento antigordofobia, que luta por equidade e pelo fim do preconceito contra pessoas gordas.

“Essa data é bastante simbólica, porque dá visibilidade para nossas causas, que vão desde a despatologização do corpo gordo até o afeto, a inserção das pessoas com corpos maiores no mercado de trabalho e na sociedade. Penso que fazemos a diferença no dia a dia, existindo e resistindo, falando sobre as causas que nos oprimem, mas sem deixar de lado o autocuidado, a diversão”, afirma a influenciadora e dançarina Thais Carla.

Thais Carla já dançou com Anitta e é ativista gorda
Reprodição/Instagram

Thais Carla já dançou com Anitta e é ativista gorda

Referência no movimento nacional, ela sempre compartilha experiências enquanto pessoa gorda que apenas quer viver em paz. “Tudo que esperam é que sejamos invisíveis, tristes, e um excelente jeito de fazer a diferença é sermos felizes. Eu venho tentando mostrar, com meu trabalho, que isso é possível e fico feliz quando garotas muito jovens dizem que sou uma referência para elas, porque cresci sem ter em quem mirar e hoje ser alguém que as pessoas se inspiram é muito importante”, completa ela, é natural do Rio de Janeiro e hoje mora em Salvador, na Bahia.

Vale ressaltar o papel decisivo que as ativistas da capital baiana tiveram para que a data seja o que é hoje. Apesar de não se saber ao certo a origem da comemoração, que possivelmente foi importada dos Estados Unidos (EUA), o dia 10 de setembro já foi muito utilizado com conotações pejorativas. O Movimento Vai Ter Gorda foi responsável por ressignificar a data no Brasil, fazendo ações em busca de direitos e de valorização dos corpos diversos. 

Mais de 50 anos de luta

Diferente do que muitos pensam, aliás, as pautas do ativismo gordo não surgiram com o YouTube e nem com as redes sociais. As verdadeiras pioneiras não usavam internet e sequer conheciam o body positive (corpo livre) – que surgiu anos depois, na década de 1990, e hoje acabou se desvirtuando, priorizando pessoas próximas ao padrão de beleza e invisibilizando pessoas gordas.

Entre 1960 e 1970, ativistas da organização Fat Underground – braço da NAAFA (Associação Nacional para o Avanço da Aceitação dos Gordos) – já discutiam questões como acessibilidade, direitos e o preconceito em todas as esferas da estrutura social. 

O Fat Underground é um braço da NAAFA
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O Fat Underground é um braço da NAAFA

Em 1973, há quase 50 anos, as ativistas gordas Judy Freespirit e Aldebran publicaram o Manifesto pela Libertação das Pessoas Gordas, o Fat Liberation Manifesto , um marco no ativismo gordo, pedindo um olhar mais humano da sociedade perante os corpos dissidentes.

O documento também critica a indústria da magreza e a objetificação dos corpos gordos; conclama pelo fim da discriminação contra pessoas gordas nas áreas de emprego, educação, instalações públicas e serviços de saúde; explica como a gordofobia médica só contribui para a piora da saúde das pessoas gordas; e condena a patologização dos corpos gordos.

O Fat Underground surgiu no final dos anos 1960
Divulgação

O Fat Underground surgiu no final dos anos 1960

Patologização

Mas o que significa patologizar corpos gordos? A filósofa e artista Malu Jimenez, gorda, feminista e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), responde: “Significa associar todos os corpes gordes como doentes, já que associam esse corpo à doença – nesse caso, a “obesidade”. Nós, pesquisadores dos Estudos do Corpo, propomos uma revisão desse olhar patologizador desses corpos, porque é um dos pilares do estigma da gordofobia, preconceito que é estrutural, institucionalizado e está em todos os lugares e discursos em nossa sociedade. Ou seja, todos somos gordofóbicos, inclusive eu, que estudo o tema há seis anos”.

Se em 2015 – quando o termo gordofobia se popularizou no país sobretudo por conta do feminismo negro, das manifestações nas ruas e, é claro, das redes socias – muitas pautas da militância giravam em torno de uma moda mais inclusiva e de respeito, hoje esses assuntos permanecem, mas existe um foco ainda maior para acessos e direitos e para a despatologização do corpo gordo na sociedade.

Ativista e artista, Malu Jimenez é especialista em gordofobia
Acervo Pessoal)

Ativista e artista, Malu Jimenez é especialista em gordofobia

“Patologizar o corpo gordo é desumanizar essas pessoas, tirar direitos básicos delas, como de entrar em cadeiras, macas de hospitais, transportes públicos, emprego, etc. É privá-los, inclusive, de falar sobre si mesmos e de buscar saúde”, resume a pesquisadora Malu Jimenez.

Malu é autora do livro “Lute como uma gorda: Gordofobia, resistências e ativismos” (Editora Philos), adaptação de sua tese de doutorado . Também fundou Grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil e comanda o projeto Lute como uma Gorda.

Lute como uma Gorda, livro de Malu Jimenez, é referência nos Estudos do Corpo Gordo
Divulgação

Lute como uma Gorda, livro de Malu Jimenez, é referência nos Estudos do Corpo Gordo

Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), a nutricionista Mirani Barros pontua que despatologizar é falar de corpo, poder e medicina. “Para entender a condição desvalorizada dos corpos gordos, é preciso entender que eles estão historicamente sujeitos a uma coleção de certezas médicas que criaram a noção de um corpo perigoso, considerado doente e risco para uma série de doenças. E mais, que a medicina tem a primazia da explicação e legitimação dos corpos. Portanto, toda vez que pensamos em corpos gordos não escapamos dessa fatídica ideia de um corpo ruim, que precisa ser corrigido”, explica ela, que hoje é professora em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Esse discurso da doença e do perigo mobiliza e tenta justificar práticas operadas tanto pela medicina privada quanto pela saúde pública e amplamente difundidas no senso comum para a regulação do tamanho, forma e peso corporal. “Essas regulações têm como principal efeito a constituição da magreza e da esbelteza como status de corpo normal. Isso, como um traço identitário do feminino hegemônico, pesa para as mulheres também”, pontua Mirani.

Mirani é pesquisadora do corpo gordo e crítica da política de combate à obesidade
Acervo pessoal

Mirani é pesquisadora do corpo gordo e crítica da política de combate à obesidade

Para a pesquisadora do corpo gordo, a grande questão colocada nesse mito do corpo único é a categórica impossibilidade de realização da beleza e da saúde para a imensa diversidade de corpos que dispomos enquanto espécie e grupos sociais. “O esforço não é pela crença infantil de que gordos não possam eventualmente ficar doentes, ou de que algumas condições possam de fato se associar à gordura, mas pelo direito ao cuidado não discriminatório que revele e valide a multiplicidade de corpos e a diversidade corporal como o novo modelo de compreensão dos corpos”, acrescenta ela, que acumula experiência nas áreas de saúde, política e direito humano à alimentação adequada. 

Mirani acredita que a despatologização do corpo gordo é o único caminho para que todos os corpos se constituam valorosos na suas diferenças. “Esse movimento é urgente, porque pessoas morrem e são violadas e violentadas a pretexto de saúde e política. A valorização da experiência gorda é sistematicamente apagada”, pontua.

Gordofobia médica

Essa negligência na área da saúde, aliás, é algo muito relatado nos últimos anos por diversas pessoas através da hashtag #gordofobiamédica nas redes sociais. É também uma das principais pautas dos ativistas antigordofobia atualmente. Além da falta de aparelhos e objetos acessíveis para pessoas gordas, há muitos relatos de descaso dos próprios profissionais de saúde, sobretudo médicos, o que acaba gerando consequências graves na vida de uma pessoa gorda, inclusive um ciclo de não-cuidado. 

“Propaga-se erroneamente que pessoas gordas são doentes, no entanto, a cada vez que essas pessoas vão ao médico, seja por qual motivo for, são tolhidas, primeiro porque a balança não as aguenta, segundo porque os médicos oferecem diagnósticos sem qualquer tipo de exame, baseados apenas no tamanho do corpo e no olhar e, ainda mais triste e grave, porque os equipamentos não suportam os pesos e corpos e elas são encaminhadas a hospitais veterinários para não morrer. O auge da desumanização”, pontua a ativista Jéssica Balbino ( @jessicabalbino_ ), que é mestre em comunicação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

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Para ela, existe uma certa hipocrisia de algumas pessoas, que muitas vezes “fiscalizam” pessoas gordas e seus hábitos, mas não olham para o próprio umbigo. Falta empatia, ainda mais que, segundo um estudo publicado pela revista Psychological Science, a gordofobia aumenta o risco de morte em 60%.

“No fundo, ninguém está preocupado com a saúde ninguém. Se estivessem, doariam sangue, afinal, os hemocentros estão com os estoques baixíssimos, sobretudo durante a pandemia”, acrescenta.

A ativista e jogadora de basquete amadora Ellen Valias ( @atleta_de_peso ) concorda e crava que “a área da saúde não se preocupa de verdade com a saúde da pessoa gorda”. “Não existe interesse da medicina em cuidar de fato do corpo gordo. A gente é taxado como doente e pronto, acabou. É muito importante parar de chamar as pessoas gordas de obesas e desconstruír esse estereótipo do corpo gordo ser doença (despatologizar). É algo bem complicado. Não tratam a gente como ser humano. Não veem a gente como pessoas que têm a dignidade de cuidar da saúde sem ser ridiculado pelo peso. O mínimo que a gente deveria ter é o direito de tratar a saúde sem ser negligenciado. É como se o corpo gordo não devesse existir. A gordofobia é massacrante”, desabafa.

Ellen é apaixonada por basquete desde pequena
Reprodução/Instagram

Ellen é apaixonada por basquete desde pequena

Atividades físicas

Outro direito que é negado às pessoas gordas, comenta Ellen, é o de fazer atividade física. Já na infância, crianças gordas e consideradas fora do padrão sofrem preconceito e recebem a mensagem da sociedade de que seus corpos não são capazes. “Nessa fase, você já começa a entender que o seu corpo não é válido. Você é ridicularizado, não é escolhido para os times. Se for jogar futebol, te colocam no gol. Meninos gordos não ficam sem camisa porque têm os peitos maiores do que os dos amigos e são ridicularizados. Isso faz com que a criança entre em pânico e comece a não querer fazer aula de educação física e invente desculpas para fugir desse ambiente gordofóbico. Isso gera um estresse muito grande na criança”, avalia Ellen.

Como consequência desse preconceito na infância, muitos acabam desenvolvendo uma relação problemática com a atividade física. “Você não vai gostar se não te acolhe. Após o sofrimento da infância, a atividade física é apresentada na adolescência e na fase adulta como sinônimo de emagrecimento, estética, como punição. As motivações são erradas devido a toda essa indústria do emagrecimento, beleza e estética. E assim se perde a verdadeira essência do esporte e do exercício físico, que é o bem-estar, além da saúde mental”, pontua a ativista. 

Por isso, muitas pessoas gordas internalizam que não gostam de atividade física, acredita. “Se acham culpadas, relaxadas, mas não são. A atividade física é negada para nós. Fora a acessibilidade de roupas, que a gente não tem. Muitas vezes eu ia jogar e o uniforme não servia, minha mãe tinha que remendar. Até hoje eu vou jogar e levo uma regata. Quando eu jogava, eu nunca estava 100%. Eu ficava preocupada se meu short ia rasgar, se meu top ia segurar os meus peitos”, lembra Ellen, que é também fundadora do projeto Rachão Basquete Feminino, que promove a ocupação de mulheres em quadras públicas de São Paulo. 

Ainda nas quadras, ela revela que ficava com medo até de cair durante as partidas e das pessoas falarem que era porque ela é gorda. “A gordofobia faz isso: ela constrange e tira a humanidade. A gente precisa construir uma nova relação com a atividade física e esse é o motivo que eu compartilho minha vivência na internet. Preciso contar para pessoas gordas iguais a mim que elas não são culpadas. Precisamos tirar essa culpa das costas e tentar construir uma nova relação com a atividade física”, indica. Pensando em mudar esse cenário, inclusive, Ellen está cursando Educação Física.

Mais direitos negados

Essa nova relação com o corpo é bem difícil de ser alcançada, ainda mais em uma sociedade na qual pessoas gordas precisam justificar a própria existência a todo momento, explicando o porquê “merecem” estar vivas. “São pessoas que têm seus direitos negados e são desumanizadas, a começar pelos espaços em que não podem ocupar justamente por não caber. O ir e vir das pessoas gordas é limitado, uma vez que elas não cabem em catracas (de ônibus, trem, metrô, banco, etc), em bancos e cadeiras de espaços públicos e de uso comum e de serviços e, pessoas gordas não são contratadas no mercado de trabalho e sofrem limitações e têm os direitos tolhidos, principalmente na saúde, que é o mais grave”, considera Jéssica, que também é artista e produtora cultural.

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Jéssica Balbino também criou o projeto Margens que atua na valorização das mulheres na literatura marginal, periférica, saraus e slams no Brasil
Acervo pessoal

Jéssica Balbino também criou o projeto Margens que atua na valorização das mulheres na literatura marginal, periférica, saraus e slams no Brasil

“É importante falar que a gente não tem que ficar dando satisfação da nossa vida. O gordo tem que ser respeitado estando saudável ou não. A saúde é nossa e quem cuida da nossa saúde é a gente”, completa a atleta Ellen.

Ainda entre os acessos negados à essas pessoas, Jéssica cita o mercado de trabalho. Uma pesquisa do site Catho, de divulgação de vagas de emprego, revela que de 31 mil presidentes e diretores de grandes organizações entrevistados, 65% não contratariam pessoas gordas. Além disso, a mesma pesquisa aponta que pessoas gordas ganham menos do que pessoas magras. 

“Também às pessoas gordas é negado o afeto. São corpos sempre muito desejados, porém, nunca assumidos, então, pessoas gordas são destinadas aos relacionamentos secretos, às perversões, ao que ‘não pode se tornar público’, ficando invisibilizadas afetivamente”, lamenta a ativista e artista. 

Todo esse preconceito fica ainda mais evidente quando existe a questão racial. “É importante falar sobre a racialização, porque esse marcador torna tudo mais difícil. Sou gorda e preta e sinto isso na pele”, comenta Ellen Valias. Alguns estudos mais atuais sobre o tema, inclusive, defendem que a gordofobia e o racismo têm a mesma raiz. O conceito de interseccionalidade, que inclui o estudo da intersecção de sistemas relacionados de opressão, também tem sido muito abordado nas rodas de discussão.

Estereótipos

Falar em visibilidade à pauta antigordofóbica é também falar da representação midiática dos corpos gordos e dos estereótipos reproduzidos em todos os meios de comunicação que precisam ser desconstruídos. É o que ressalta a pesquisadora do tema, doutora em Comunicação, Agnes Arruda ( @tamanhoggrande ).

Além da presença quase nula de referências positivas, quando uma pessoa gorda é retratada pela mídia, via de regra, é de forma estereotipada, explica: “Nesse sistema, a pessoa gorda é impedida de existir por si só. Atrelada a ela, vem sempre uma característica”, continua. “A que mais nos habituamos a ver é a da gorda engraçada, seja porque está designado a essa pessoa fazer alguma palhaçada ou simplesmente porque seu corpo, como ele se apresenta e se movimenta, é considerado engraçado”.

A característica, que parece positiva, atua dentro de um sistema de compensação que retroage no pensamento social. “Já que você é gorda, que seja ao menos engraçada”, explica a pesquisadora. “É o que acontece também com a pessoa gorda que é sexy ou com o estereótipo da gorda inteligente, reproduzido à exaustão”.

Agnes Arruda, autora de livro sobre gordofobia, lança luz sobre esse preconceito e a relação com a mídia
Acervo pessoal

Agnes Arruda, autora de livro sobre gordofobia, lança luz sobre esse preconceito e a relação com a mídia

Outros estereótipos que essas pessoas são submetidas são o da preguiça e o da falta de cuidados básicos com a higiene. “O preconceito faz com se presuma que quem é gordo só o é porque fica em casa o dia inteiro, comendo o tempo todo, sem interesse em praticar um exercício físico e desprovido de qualquer vaidade. Tal presunção está associada com a falta do autocuidado, levando então às questões de higiene”, comenta Agnes.

Autora do livro O Peso e a Mídia, Arruda alerta justamente ao fato de que o comportamento social reproduzido pela mídia com os estereótipos gordofóbicos não somente contribui para a perpetuação do preconceito como também estimula novas formas de hostilização aos corpos gordos, em um ciclo de ação e retroação. “São duas faces da mesma moeda e que precisam ser problematizadas”.

Livro O Peso e a Mídia, publidado por Agnes Arruda
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Livro O Peso e a Mídia, publidado por Agnes Arruda

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