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Como o agronegócio expôs indígenas à Covid-19? Entenda


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Maurício Monteiro/Repórter Brasil

Brasil teve alta nas exportações agropecuárias durante pandemia; Trabalhadores indígenas sofreram impacto com o fim do Ministério da Saúde

A primeira morte de indígena  na Reserva Indígena de Dourados, no estado do Mato Grosso do Sul, foi confirmada na quinta-feira 18 de junho. O contágio de trabalhadores guarani pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) começou em um frigorífico da JBS e continua colocando em risco outras comunidades por conta do trabalho fora das aldeias.


Empresas grandes afastaram funcionários indígenas, mas, para especialistas, demoraram a agir.

Por conta da pandemia de Covid-19, a indígena Erileide Domingues passa a maior parte do dia na entrada da aldeia controlando o fluxo de pessoas, com a difícil missão de manter a comunidade isolada.

Em 6 de junho, ela até conseguiu barrar a entrada de um “patrício” que queria arregimentar mão de obra para o trabalho na cana-de-açúcar. No entanto, o que ela e outros indígenas que trabalham nas barreiras sanitárias de cerca de 20 aldeias dos povos guarani e kaiowá não conseguem impedir é a saída dos trabalhadores indígenas, que não têm alternativa a não ser deixar a comunidade para trabalhar nas plantações ou em terceirizadas do agronegócio.

“Alguns saem para trabalhar… Se estiver contaminado, volta e acaba contagiando seis ou doze pessoas que estão dentro de casa”, conta Erileide, explicando por que as lideranças defendem, desde o início da pandemia, o afastamento temporário dos trabalhadores indígenas, tanto das lavouras quanto dos frigoríficos.

Foi o agronegócio o principal responsável pela entrada do vírus em diversas aldeias do Mato Grosso do Sul. Na Reserva Indígena de Dourados – onde a primeira morte foi registrada na semana passada -, a doença entrou por meio de uma funcionária indígena de um frigorífico da JBS.

Já em Caarapó, os dois primeiros infectados na aldeia Teý’ikue eram trabalhadores da cana-de-açúcar, conforme apurou a Repórter Brasil. E, agora, o padrão começa a se repetir no oeste do Paraná. Os dois primeiros casos de covid-19 na aldeia guarani de Oco’y também eram de trabalhadores indígenas: dois funcionários de uma empresa do setor frigorífico.

Em todos estes episódios, procuradores do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho intervieram, seja fiscalizando, seja cobrando medidas de segurança das empresas – e, em casos extremos, pedindo a interdição dos frigoríficos.

Grandes grupos, como JBS e Raízen, chegaram a afastar seus trabalhadores indígenas após a confirmação dos primeiros contaminados. O problema, no entanto, é que as companhias demoraram a atuar ou tomaram medidas pouco efetivas, segundo especialistas e lideranças indígenas ouvidos pela Repórter Brasil.

Informações obtidas pela reportagem junto a funcionários do frigorífico de Dourados mostram que, no início da pandemia, os ônibus que faziam o transporte dos trabalhadores eram pequenos e seguiam cheios.

“Todo mundo sentava junto”, afirma um trabalhador indígena, que preferiu não se identificar. Ele também diz que havia muitos funcionários próximos uns dos outros na sala de corte. “Lá divide paleta, pernil e barriga. Duas filas [de trabalhadores] na paleta, duas filas no pernil e duas filas na barriga”.

“Desde o começo deveriam ter feito testagem massiva dentro da JBS”, avalia o médico polo-base de Dourados, Zelik Trajber. O médico da Fundação Oswaldo Cruz, Paulo Basta, concorda: “Assim como existem recomendações especiais para idosos, as populações indígenas também deveriam ser tratadas de maneira diferenciada”, afirma, ressaltando que as empresas deveriam ter afastado rapidamente todos os trabalhadores indígenas.

Algumas empresas vêm se adequando, caso da gigante da carne, mas companhias de menor porte tiveram dificuldades de tomar medidas de prevenção.

Apuração feita pela Repórter Brasil revela que que cerca de 190 trabalhadores que vivem na reserva de Dourados foram demitidos pela empresa Monteiro Mecanização Agrícola, em junho, após terem sido impedidos de retornar às plantações de cana. “Quem vai matar é a fome, não é a doença”, afirma um indígena que não quis se identificar.

Além das demissões, fontes ouvidas pela reportagem denunciaram que empresas pequenas no setor da cana também demoraram a tomar medidas de distanciamento nos “rurais”, os ônibus que transportam os indígenas às lavouras. O Ministério Público do Trabalho chegou a cobrar, em 8 de junho, informações de pelo menos três companhias do setor da cana – Rio Amambai, M.S. Rocha e Monteiro Mecanização Agrícola – sobre as medidas adotadas para a contenção do novo coronavírus entre os trabalhadores indígenas. 

Procurada pela Repórter Brasil, a Usina Rio Amambai afirma que “não possui atualmente prestadoras de serviços que empregam mão-de-obra indígena”. A Monteiro Mecanização Agrícola e M.S. Rocha não responderam aos contatos da reportagem, mas a segunda empresa já apresentou seu plano de contingência ao MPT.

A JBS afirma que vem adotando medidas e que “a proteção de seus colaboradores sempre foi o principal objetivo e prioridade absoluta”.

Em relação aos funcionários indígenas, a multinacional alega que todos os colaboradores kaiowá e guarani foram afastados à medida que os casos de Covid-19 foram aumentando. A Raízen também informou que “afastou temporariamente, desde o dia 14 de maio, os 200 funcionários indígenas que atuavam nas atividades agrícolas e testou esses profissionais proativamente”.

‘Quem será responsabilizado?’

Para Tonico Benites, antropólogo indígena e membro da Aty Guasu, grande assembleia dos povos kaiowá e guarani, houve descaso da JBS com as comunidades indígenas. Ele quer que empresas e governo federal sejam responsabilizados pelo contágio e está acionando o Ministério Público Federal nesse sentido.

A Comissão Guarani Yvyrupa também registrou denúncia junto ao MPT e ao MPF, cobrando medidas de proteção para os trabalhadores indígenas e as comunidades guarani.

“Já sabiam que isso iria acontecer, mas não se prepararam para combater essa ameaça de morte que estava chegando”, denuncia Benites. Em uma carta publicada em dia 17 de maio, conselheiros da Aty Guasu demandaram medidas urgentes de atenção à saúde para combater a pandemia e questionaram: “Quem será responsabilizado pela morte do nosso povo?”. 

Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (CNTA), Artur Bueno de Camargo, embora os cuidados adotados pelas empresas tenham sido importantes, eles não foram suficientes para conter a disseminação da Covid-19 nos frigoríficos, já que não evitam a aglomeração de pessoas, especialmente na sala de cortes.

“Fica todo mundo curando em volta da ferida, mas parece que ninguém quer realmente cuidar da ferida”, argumenta.

A recomendação da confederação, desde o início da pandemia, era a reduzir o número de trabalhadores pela metade por turno. A entidade chegou a enviar essa proposta às empresas, a parlamentares, ao Supremo Tribunal Federal e aos ministérios. Porém, não houve interesse.

Hoje, a JBS segue as recomendações do MPT, que são o uso de máscaras,  distanciamento de 1,8 metro entre funcionários, escalonamento de empregados por horários de entrada e saída nos refeitórios e vestiários, limpeza regular das superfícies de trabalho e o afastamento dos empregados contaminados.

Mas não houve o escalonamento dos trabalhadores em diferentes turnos de trabalho. 

“Eu até entendo que não dá para entrar muito em conflito com a JBS , porque eles estão se dispondo a bancar determinadas situações”, analisa o médico Zelik Trajber, referindo-se a algumas medidas adotadas pela gigante da carne.

Segundo o MPT, após a contaminação da primeira funcionária indígena no frigorífico de Dourados, a JBS se comprometeu a manter o local onde os indígenas estão fazendo isolamento, cedido pela Arquidiocese da cidade, fazendo a limpeza, o fornecimento de materiais de higiene e oferecendo quatro refeições diárias aos pacientes.

A empresa também se comprometeu a financiar a criação de 21 leitos no hospital Porta da Esperança, mantido pela Missão Evangélica Caiuá, em Dourados.

Mão de obra disponível

Com aldeias populosas e sem o rápido afastamento dos indígenas que são a força de trabalho do agronegócio no Mato Grosso do Sul, o novo coronavírus (Sars-Cov-2) encontrou o cenário perfeito para se disseminar rapidamente.

Ao contrário de aldeias da Amazônia, as comunidades guarani e kaiowá são próximas a centros urbanos ou a plantações e a frigoríficos. Muitos deles trabalham em atividades consideradas essenciais, como coleta de lixo, na área de saúde e também no agronegócio. A única medida que teria evitado levar o vírus às aldeias teria sido o afastamento preventivo desses trabalhadores indígenas.

Apesar do rápido contágio nas aldeias, a exploração do trabalho guarani na pandemia deve persistir nas superlotadas reservas indígenas, criadas no início do século passado. “É a mesma ideia da época do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais [ex-Funai], que criou as reservas para serem depósitos de mão de obra disponível a qualquer momento”, critica o procurador da República em Dourados (MS), Marco Antônio Delfino de Almeida. 

Além da Covid-19, o trabalho no agronegócio trouxe outro problema de saúde aos indígenas do Mato Grosso do Sul. Estudos conduzidos por pesquisadores da Fiocruz comprovam que os indígenas do Estado registram, ano a ano, os mais altos índices de infecção por tuberculose de toda a população brasileira, e que o trabalho nas lavouras de cana é o que levou a essa alta incidência entre os guarani kaiowá e guarani ñandeva.

A vulnerabilidade desses povos à Covid-19 se agrava com o desmonte das políticas de saúde indígena e a desastrosa condução das ações pelo governo durante a pandemia.

“Os povos indígenas foram muito afetados pela descontinuidade no Ministério da Saúde”, critica o procurador Delfino de Almeida, que ajuizou uma ação civil para obrigar a Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, a fazer o mínimo frente à Covid-19: entregar equipamentos de proteção às equipes de saúde que atendem os guarani em Dourados.

A região de Dourados tornou-se o epicentro da pandemia no estado, com quase 2 mil infectados, dos quais 136 são indígenas, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Desse total de contaminados indígenas, 33 são empregados do frigorífico da JBS, conforme informou o MPT.

“90% dos casos em Dourados estão relacionados [direta ou indiretamente] à JBS”, afirma Delfino de Almeida; o próprio secretário estadual da saúde de Mato Grosso do Sul, Geraldo Resende, admitiu, segundo o G1, que o surto de casos de covid-19 em Dourados teve origem em um dos frigoríficos da região.

Dos frigoríficos às aldeias

Para Ernesto Galindo, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), os frigoríficos se tornaram principais vetores de disseminação da doença no Mato Grosso do Sul e no oeste do Paraná por provocarem o deslocamento de trabalhadores entre diferentes municípios e aldeias.

“Os epidemiologistas se preocupam com o contágio no contato de pessoa a pessoa; a gente, com o contágio de uma aldeia para outra”, diz ele, que estudou a proximidade entre Terras Indígenas e os frigoríficos no Centro Sul, além do deslocamento intermunicipal dos trabalhadores entre cidades. E a conclusão é a de que o núḿero de casos de covid-19 é maior quanto mais perto estiver dos abatedouros.

Além de Dourados, onde o contágio se espalhou rapidamente entre os funcionários da JBS, na cidade de Guia Lopes da Laguna, 90% dos casos de Covid-19 tiveram relação direta com o frigorífico Brasil Global, segundo informações da Secretaria Municipal de Saúde.

No dia 8 de maio, a fábrica suspendeu suas atividades após cinco funcionários testarem positivo. Segundo o MPT, 109 empregados da Brasil Global tiveram diagnóstico positivo para a Covid-19. Já em Bonito (MS), o frigorífico Franca Comércio Alimentos também paralisou temporariamente o trabalho em sua fábrica após 30 casos de Covid-19.

Também no Rio Grande do Sul, diversos frigoríficos foram interditados por conta da rápida disseminação do vírus no ambiente de trabalho. Segundo dados da última terça (23) do MPT-RS, trabalhadores de abatedouros equivalem a 25% do total dos casos oficiais da covid-19 no Estado. Essa situação ocorre justamente devido à concentração e à proximidade dos trabalhadores dentro dos frigoríficos, conforme explica o procurador do MPT de Mato Grosso do Sul, Jeferson Pereira.

Enquanto os frigoríficos se revelam como um dos principais vetores de contágio no país, a produção desses abatedouros tem registrado aumento na produção. A agropecuária apresentou crescimento de 0,6% no primeiro trimestre de 2020 em comparação ao quarto trimestre de 2019, conforme últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O setor  agropecuário foi o único da atividade econômica nacional a crescer no período analisado, principalmente por conta do desempenho da pecuária, das lavouras e do aumento de 17,5% na exportação, de acordo com dados publicados em março pelo Ministério da Agricultura.

O abate de aves e suínos atingiu valores recordes no primeiro trimestre de 2020, segundo o IBGE . O abatimento de frangos cresceu 5% nos primeiros três meses do ano e superou o maior volume da série histórica, iniciada em 1987. Já o número de cabeças de suínos foi 5,2% superior ao mesmo período no ano passado.

“Com essa produção, é impossível manter o distanciamento social”, analisa o presidente da CNTA, Artur Bueno de Camargo.

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