“Povo que venderam seus votos não só na Palmeira, mas em Campina Grande; que tavam fechado comigo e só porque eu não tinha R$ 10 para dar, tirar do pão da minha filha para vocês: bando de miseráveis”. Assim inicia um vídeo postado nas redes sociais pelo candidato a vereador Fanta Cantor (Solidariedade) em Campina Grande (PB). Visivelmente irritado, ele continua: “90% de vocês são todos passa-fome, miseráveis. Venderam seus votos por causa mixaria. Fica o recado. Agora vem aqui em casa tomar satisfação.”
No vídeo de 40 segundos gravado após o resultado do 1º turno das eleições , o candidato do Solidariedade, que obteve 192 votos, lamenta a compra de votos no bairro da Palmeira, na zona norte do município. Após a publicação, o candidato do Solidariedade foi espancado. Segundo portais de notícias locais, dois homens invadiram a casa do cantor. Ele teve o antebraço fraturado e foi levado ao Hospital de Emergência e Trauma, onde foi internado para passar por cirurgia.
Neste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) computou 63 processos por “captação ilícita de sufrágio”, termo técnico para a compra de votos. O número representa um aumento de 425% em comparação às últimas eleições, em 2018, quando apenas 12 processos foram abertos na Justiça Eleitoral pelo mesmo motivo.
O aumento do registro de casos também levou a ataques, desentendimentos e episódios de violência. Pelo menos quatro casos de violência política relacionados à compra de votos ocorreram no pleito eleitoral deste ano, de acordo com um levantamento realizado por uma coalizão de nove veículos jornalísticos independentes.
Em todo o mês de novembro, os veículos de imprensa contabilizaram 150 casos de violência relacionados à eleição, incluindo 34 ameaças, 71 agressões, 44 atentados ou tentativas de homicídio e cinco assassinatos. A maior parte dos casos, um total 130, ocorreu no primeiro turno. Já na segunda etapa da eleição, realizada em apenas 57 municípios, houve 20 ocorrências. Os números do primeiro turno foram atualizados com novos casos que chegaram após o fechamento da primeira reportagem sobre violência nas eleições municipais — que já havia registrado um caso de violência a cada três horas na primeira quinzena de novembro. Somente casos de “violência presencial” foram considerados no levantamento, que não incluiu ataques online ou por telefone.
Em 2018, levantamento feito pela Agência Pública registrou 135 casos de violência política durante as eleições.
Em Guarulhos, município da região metropolitana de São Paulo, fiscais eleitorais indicados pelo Partido dos Trabalhadores foram vítimas de atos de violência no domingo de eleições, onde o 2º turno para prefeitura estava sendo disputado entre o atual prefeito Guti (PSD) — que foi reeleito — e Elói Pietá (PT). A confusão começou quando fiscais petistas identificaram a ocorrência de campanha eleitoral irregular dentro de um colégio eleitoral. Miriam Minzé Correia e Jeivison José da Silva Santos foram xingados e agredidos pelo também fiscal, Roni Silva, associado ao prefeito Guti.
A cena foi gravada e publicada nas redes sociais da vereadora paulistana Juliana Cardoso (PT) e do coletivo Jornalistas Livres. No vídeo, o agressor empurra o rosto de Jeivison contra uma grade e pega seu celular.
Testemunhas apartaram a briga e recuperaram o celular da vítima. Segundo Jeivison, estava acontecendo boca de urna na frente do local e os fiscais ligados ao prefeito estavam passando com material de campanha dentro das salas. Ao tentar denunciar, a fiscal Miriam foi xingada e começou a ser encurralada por Roni na grade da escola. Jeivison, então, teria tentado defendê-la e registrar o ocorrido com seu celular, o que levou à agressão que deixou ferimentos leves no seu pescoço.
Em Joviânia, no estado de Goiás, o produtor rural Ivaldo Fernandes, 58 anos, foi abordado e conduzido até a delegacia da cidade vizinha, Goiatuba, acusado de estar comprando votos em favor da campanha da candidata a prefeitura Roberta do Nego (PROS) um dia antes da votação do primeiro turno, em 14 de novembro.
Em um vídeo da abordagem, o coronel da reserva da PM e ex-prefeito da cidade, Romeu José Gonçalves é visto com uma arma de fogo, enquanto dois homens estão rendidos com as mãos na cabeça próximo a um carro. Mais à frente, mais dois homens, ligados ao coronel, revistam outro veículo. Após alguns minutos, Romeu atravessa a rua e desfere um soco na tentativa de acertar o rosto de Ivaldo.
“Eu estava com um amigo, que é 90 também, do mesmo partido [PROS]. Depois ele chegou com a arma em punho, agressivo, agredindo, falando que a gente estava preso por compra de votos. Como assim, eu estava conversando com o cara do meu próprio partido, rapaz, como eu ia comprar voto de um amigo nosso que estava trabalhando na mesma campanha?” Logo em seguida, um tal de “Cleitinho” jogou R$ 3 mil no carro para incriminar nós, dizendo que a gente estava comprando votos”, diz.
A reportagem conseguiu contato com Gildinho que, por orientação do advogado, preferiu “não me manifestar sem ser ouvido pela Justiça primeiro”. Também tentou contato com Romeu em diversos telefones e com a delegacia de Goiatuba, mas sem sucesso.
Servidores públicos, campanhas partidárias
O segundo turno das eleições municipais no país também foi marcado pelo envolvimento de funcionários públicos em campanhas partidárias e ataques a opositores. Em Belém, no Pará, professoras da rede pública registraram um boletim de ocorrência, no dia 27 de novembro, contra a secretária municipal de educação, Socorro Coutinho. A queixa denuncia Coutinho por agressão verbal, assédio moral e perseguição.
Segundo Sílvia Letícia, coordenadora-geral do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública (Sintepp) de Belém, o caso ocorreu dentro da escola Almerindo Trindade e teria sido motivado por questões político-eleitorais. No dia, algumas professoras compareceram à escola para participar da reinauguração do espaço, que teria passado por uma reforma. Como tinham adesivos e bottons de apoio ao candidato a prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL), foram acusadas pela secretária de fazer campanha eleitoral na escola. Coutinho ameaçou retirar as professoras com o auxílio da Guarda Municipal.
Em um vídeo divulgado pelo Sintepp, Coutinho, exaltada, ameaça as professoras com um processo administrativo disciplinar. Uma delas diz que Coutinho a obrigou a tirar o adesivo. Contudo, o uso de bottons e adesivos caracteriza-se como manifestação silenciosa, assegurada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e considerada parte do direito de manifestação.
Segundo Sílvia Letícia, “durante o processo eleitoral no primeiro e no segundo turno, a pressão política e o assédio moral junto aos trabalhadores foi muito intensa, vários servidores foram coagidos e ameaçados”. O sindicato afirma ter recebido denúncias parecidas de professores de ao menos 14 escolas de Belém.
Também na região Norte do país, em Nova Airão (AM), região metropolitana de Manaus, o empresário Victor Santos (PSDB), que foi candidato a prefeito derrotado, afirma ter sido agredido por funcionários da prefeitura em 14 de novembro.
Segundo o relato do político de 21 anos, ele estava caminhando com a namorada e o pai — o ex-prefeito de Nova Airão Wilton Santos (PSDB) —, quando foi interpelado pelos apoiadores do prefeito reeleito Frederico Junior (PSC). “Fomos surpreendidos por motoqueiros, alguns funcionários da prefeitura, inclusive, que começaram com gravações, xingamentos e provocações. Ao retrucar, meu pai foi agredido e quando tentei prestar ajuda, fui agredido com um capacete de motocicleta”, afirmou à reportagem. Em vídeo enviado por Santos, é possível ver o momento da agressão. Na gravação, os opositores acusam o pai do candidato de ter agredido uma das mulheres antes. O jovem político nega ter reagido.
Antes desse episódio, em 28 de outubro, um segurança do prefeito, que seria policial militar, teria retirado uma faixa de campanha de Santos, exibido arma e ameaçado de prisão seus apoiadores. O político tucano registrou Boletim de Ocorrência em relação aos dois episódios, que estão sendo investigados. O caso de agressão na noite anterior ao pleito foi encaminhado às autoridades pelo promotor do Ministério Público Eleitoral João Ribeiro Guimarães Neto.
Violência contra jornalistas
“Se soubesse que seria entrevistado por um cara que volta em Emanuel, eu não estaria nessa entrevista”, diz irritado o candidato à prefeitura de Cuiabá pelo Podemos, Abílio Júnior, ao jornalista Khayo Ribeiro, durante uma live no dia 23 de novembro. O candidato foi protagonista de nada menos que três episódios de agressão verbal nas eleições, dois deles envolvendo jornalistas e o outro, uma troca de ofensas com seu adversário no pleito, Emanuel Pinheiro (MDB).
Novamente, repórteres foram alvos de ataques no exercício da profissão, desta vez na cobertura das eleições. Em todo o mês de novembro, foram registrados 11 casos de violência contra os profissionais de imprensa.
Na live transmitida no Facebook da Gazeta Digital, Abílio ofende o jornalista ao ser questionado sobre seus novos aliados. Quase ao final do debate, o repórter rebateu o discurso anti-corrupção de Abílio e questionou o apoio recebido durante o segundo turno por parte de políticos investigados e condenados.
O candidato responde que Khayo “fez uma pergunta muito infeliz”. “O que eu percebo aqui é uma distorção da verdade”, continuou. Abílio afirmou ainda que o jornalista está tentando sujar a sua imagem para deixar a imagem do candidato adversário, Emanuel Pinheiro (MDB) “mais bonitinha”.
Quatro dias depois, no dia 27 de novembro, durante o debate entre os candidatos promovido pela TV Vila Real (Record), Abílio voltou a questionar jornalistas. O candidato acusou o apresentador Pablo Rodrigues de fazer ” fake news “, ao responder uma pergunta sobre a fiscalização dos recursos públicos durante a pandemia. Após ser novamente contestado, Abílio afirmou que o jornalista estava fazendo um “joguinho” e insinua que os veículos teriam ligações com o atual prefeito.
Violência contra pessoas trans
As eleições de 2020, que se destacou com o número de 25 candidatos e candidatas transsexuais eleitos pelo país, também foi marcada pela violência contra pessoas trans — foram registrados três casos de LGBTfobia no levantamento.
A cinco dias do primeiro turno da eleição , em 10 de novembro, Patrícia Borges, mulher trans de 30 anos, foi agredida com mordidas e golpes de haste de ferro durante panfletagem na Avenida Paulista, em São Paulo. Ela estava em frente ao shopping Center 3 fazendo campanha para a então candidata Erika Hilton (Psol), que no domingo (15) foi eleita a primeira vereadora trans e negra da capital com mais de 50 mil votos — a sexta maior votação da cidade.
Patrícia contou que ela e mais dois colegas entregavam panfletos por volta das 15h quando abordaram uma mulher loira. “Eu disse ‘olha, é importante a gente eleger a primeira vereadora trans, travesti e preta’. Aí ela disse automaticamente ‘tudo cambada de viado, tudo tem que morrer’”, narra.
Em seguida, a mulher teria ido embora, mas voltado cinco minutos depois acompanhada de três homens e segurando uma haste de metal que, segundo Patrícia, era um suporte de “pau de selfie”. “Ela veio para dar no meu rosto, eu consegui segurar, e nessa que segurei, ela puxou meu cabelo. Aí o menino veio por cima, puxando também o meu cabelo, querendo pegar essa haste de metal e me bater, e chegou ainda o outro querendo me cobrir também. Um puxou de um lado, outro puxou de outro, fiquei tensa, e ela mordeu o meu braço”, relata.
A polícia foi chamada ao local para atender a ocorrência e colheu os dados da mulher — Patrícia prefere não divulgá-los enquanto a investigação não for finalizada. Acompanhada de um advogado, ela foi à delegacia e registrou um boletim de ocorrência sobre a agressão. “Minha mão ficou roxa e inchada por conta da força com a qual ela veio — ela tinha uma fúria muito grande — e o meu braço [direito] até hoje está cicatrizando”, declara Patrícia, que realizou também exame de corpo de delito.
Patrícia não tem dúvidas de que o que aconteceu com ela foi um crime político. “Mas, no final de tudo, fomos abençoadas e abrilhantadas, a Erika foi eleita com 50 mil votos. Foi muito revolucionário, em 2020, a gente conseguir eleger a primeira vereadora trans, travesti e preta, porque os corpos trans e travestis são muito abusados pela prostituição”, destaca.
No Recife, no dia 15, a jornalista Lara Tôrres, do site Leiajá, afirma ter sido hostilizada por moradoras de uma rua próxima a uma seção eleitoral, na zona sul da capital de Pernambuco. Três mulheres que distribuíam santinhos do candidato à prefeitura Mendonça Filho (DEM) e de Elson da Ótica (Solidariedade), candidato a vereador.
O episódio teria ocorrido na calçada em frente uma casa na rua do colégio. As mulheres ameaçaram processar a repórter e chamar a polícia depois que Lara realizou uma abordagem, se identificou como jornalista e começou a gravá-las com o celular perguntando o que estavam fazendo. “Sabia que estavam fazendo boca de urna, que é crime eleitoral. Mesmo me identificando como jornalista, com crachá exposto, elas me agrediram verbalmente e disseram que eu não tinha direito de registrar o ato”, diz, em denúncia enviada à Abraji.
Uma das mulheres que estaria fazendo o boca de urna xingou a repórter de “esquerda e extrema-esquerda” e também sugeriu que ela seria LGBT, como parte das ofensas proferidas. “Ela estava o tempo todo sendo bastante violenta. Eu vi a hora realmente de ela vir para cima de mim”, conta. Depois desse conflito, quando a jornalista caminhava em direção ao colégio eleitoral, uma outra mulher também com camisa de Mendonça Filho (DEM) teria gritado mais xingamentos contra ela. Ela registrou denúncia no aplicativo Pardal, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Já em Uberlândia (MG), a mineira Gilvan Masferrer, de 30 anos, foi a única candidata a vereadora eleita no país pelo partido Democracia Cristã (DC). Sete anos depois de ser apedrejada na periferia da cidade por se assumir uma mulher transexual — a agressão deixou a manicure entre a vida e a morte — Gilvan afirma que voltou a ser xingada, hostilizada e agredida verbalmente no mesmo bairro, o Morumbi, durante a campanha eleitoral. Seus supostos agressores eram, segundo ela, de diferentes idades, mas preferencialmente homens.
Ela entregava santinhos da sua campanha no sinal da avenida Jerônimo José Alves, quando um motorista não identificado, ao abrir a janela do carro, teria jogado uma garrafa de água na candidata. Outros eleitores pegaram o material de campanha e jogaram no bueiro da rua, na frente da candidata. Gilvan foi eleita sem receber nenhum apoio financeiro do partido. A candidata não fez boletim de ocorrência e nem gravou as cenas de violência da qual foi vítima.
A coordenadora da Justiça Global, Sandra Carvalho, pontua que o Brasil precisa olhar com atenção para crimes contra representantes de “minorias”: mulheres, negros, LGBTs. “O que a gente verifica é que os casos são tratados isoladamente, não como uma violência sistêmica, então como cada caso é um caso, não se cria instrumentos tanto de apuração, investigação e responsabilização para quem pratica essa violência, como também de prevenção pelos partidos políticos que elegeram esse segmento — de mulheres negras, pessoas trans. Eles têm que estar preparados para dar um apoio e suporte para que essas pessoas possam exercer com segurança os seus mandatos.”
A organização, em parceria com a ONG Terra de Direitos, lançou um levantamento de casos de violência política no Brasil entre janeiro de 2016 e setembro deste ano. Segundo a publicação, 2020 é o ano mais violento para candidatos e representantes de cargos eletivos. O país registrou um atentado ou assassinato motivado por fins políticos a cada três dias.
O estudo computa registros noticiados pelos veículos de comunicação de assassinatos de atentados contra candidatas e candidatos. Durante as primeiras semanas de setembro, período pré-eleitoral, e período eleitoral de 2020, os registros aumentaram em 196% em relação aos meses anteriores. O levantamento identificou, entre 1 janeiro a 1 de setembro de 2020, 13 assassinatos e 14 atentados contra à vida de representantes de cargos eletivos e pré-candidatos no Brasil. Já para o período compreendido entre 2 de setembro a 29 de novembro, foram contabilizados 14 assassinatos e 66 atentados.
Carvalho pontua que a violência política não acontece apenas em época eleitoral, mas aumenta bastante nesse período. “Temos uma sistemática de violência política, envolvendo desde pessoas que estão em cargos eletivos até aquelas que estão cumprindo alguma função em governos ou em legislativos. Mas é certo que no período eleitoral há um incremento dessa violência, principalmente quando as eleições são municipais”, finaliza.
Com metodologia diferente, o próprio TSE divulgou dados sobre a violência política nas eleições . E que comprovam a tendência de aumento da violência por motivação política. Foram registrados 264 crimes de violência contra candidatos ou pré-candidatos. No pleito de 2018, esse número foi 46.