No final de março, a cidade equatoriana de Guayaquil foi atingida violentamente por um surto de coronavírus. Com hospitais, necrotérios e cemitérios em colapso, os mortos começaram a se acumular nas ruas esperando para serem recolhidos.
Em meio ao caos, dezenas de cadáveres — sem identificação — foram empilhados em contêineres instalados em hospitais, enquanto pessoas vagavam entre os corpos para encontrar seus parentes.
Quase quatro meses se passaram desde que a crise da saúde eclodiu; nesta semana, o Laboratório de Criminalística da Polícia Nacional e Investigações começou a entregar cerca de 50 corpos.
Na quinta-feira passada (16), ainda havia cerca de 100 cadáveres em estado de decomposição aguardando para serem identificados através de testes de DNA.
E ainda não se sabe exatamente qual é o número total de pessoas desaparecidas que foram vítimas do vír u s.
Félix Merchán foi uma delas. Sua esposa, Silvia Guzmán, procurou desesperadamente pelo ele, até sua identificação.
A BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Guzmán. Confira o depoimento dela.
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Ele estava bem e de um momento para o outro ficou doente. Eram três da manhã e ele disse que não conseguia respirar. Juntamente com outros membros da família, visitamos todos os hospitais e clínicas por aqui, e ele não pôde ser internado devido à superlotação.
Os hospitais e clínicas nos disseram que não havia oxigênio, que não tinham como ajudá-lo. Finalmente, chegamos ao Hospital del Guasmo Sur, às nove da manhã. Lá, eles o admitiram na sala de emergência e o deixaram em uma cadeira de rodas porque não havia leitos.
Os pacientes estavam deitados lá ao Deus dará. Era como estar em uma guerra, mas uma guerra sem armas, uma guerra biológica.
Meu marido estava com falta de ar. A última coisa que ele me disse foi: “Não vou sair dessa. Quero que você se cuide e lembre-se de que eu sempre estarei com você”. Em seguida, perdeu a consciência.
Ele morreu nos meus braços. Eram 10h00 da manhã de 1º de abril. Foi muito difícil para mim, porque eu o vi morrer e não pude ajudá-lo. Eu vi a vida dele desaparecer lentamente.
Então, um médico me removeu à força porque disse que havia muita carga viral naquele espaço. Ele me disse para preencher um formulário e depois voltar para recuperar o corpo.
Quando voltei na manhã seguinte, eles já haviam perdido o corpo. O guarda me disse para procurá-lo no necrotério do hospital.
Havia muitos corpos em todo o lugar, eles nem sabiam onde colocá-los. Era como assistir à série Walking Dead . Eles estavam no chão, era horrível. Não havia refrigeração. Chegavam todos os que morriam em casa e os que estavam pelas ruas.
E então eles selecionaram 80 cadáveres e os colocaram no necrotério para que os parentes pudessem reconhecê-los. Se você quisesse colocá-lo dentro do contêiner, teria que pagar aos guardas US$ 100 a US$ 300 para conseguir entrar.
Aqueles que conseguiam entrar nos contêineres precisavam remover o envoltório de plástico para ver se o corpo pertencia ao seu ente querido. Eles nem se dignaram a colocar uma pulseira de identificação nos cadáveres. Não seguiram nenhum protocolo. Não havia ordem nenhuma. Houve até o caso de uma senhora que estava viva — cujos parentes tinham chegado a receber cinzas de outra pessoa.
Era o verdadeiro caos. As pessoas abriram os invólucros, havia corpos em decomposição. Se eles fossem organizados, se cada cadáver fosse identificado, como deveria ser, nada disso teria acontecido.
Voltei no dia seguinte e no próximo e no próximo, mas nunca o encontrei. Passei oito dias seguidos indo ao necrotério do hospital até que nos disseram que não entregariam mais corpos. Que o governo os enterraria.
Fiquei arrasada, porque queria encontrar meu marido para me despedir pela última vez. Eles me disseram que eu tinha que acessar um site para descobrir em qual cemitério meu marido havia sido enterrado. Fiz isso por três semanas e o nome dele nunca apareceu.
Então, entramos em contato com um advogado para pressionar e, com os outros membros da família, começamos a fazer passeatas nas ruas. Estava carregando um pôster com a fotografia do meu marido, o nome dele e onde ele desapareceu. Formamos um grupo de cerca de 200 pessoas. Havia também outros grupos, mas não sabemos quantos estão faltando no total.
Procuramos em hospitais, necrotérios, cemitérios, onde quer que estejam. Mas nunca tivemos uma resposta. Como não apareceu, cheguei até a pensar que ele poderia estar vivo.
Pensei que talvez ele tivesse acordado no hospital, e perdido a memória. Embora eu o tenha visto morrer, no fundo, esperava encontrá-lo vivo. Também pensei que o corpo poderia ter sido entregue a outra família, que estava enterrado.
Pensava no que diria aos filhos de meu marido, porque passei a ser responsável por eles. Todo dia eu pedia a Deus que me desse um sinal. Dizia: “Deus, me ajude, porque não sei mais o que fazer”.
Nunca perdi a esperança. Dizia a mim mesma que nunca pararia de procurar. Era meu direito ter o corpo do meu marido de volta. Ele não era uma pessoa aleatória, era meu marido.
Queria que o médico legista me dissesse um dia “aqui está o corpo”.
Havia um grupo de médicos forenses de outro país — não me lembro de onde — para trabalhar na identificação dos corpos em maio. Descrevi para eles todas as características físicas do meu marido, como eram os cabelos, o nariz, os dentes, tudo. Mostrei-lhes uma foto em que era possível ver as roupas que meu marido usava no dia em que morreu no hospital.
Uma pessoa que trabalha lá me disse que nos primeiros dias de junho eles retiraram os contêineres com os corpos do hospital e os levaram à Polícia Judiciária para fazer identificações.
Dias se passaram, liguei para eles e me disseram que estavam trabalhando para encontrá-lo. Primeiro com impressões digitais, depois, pelas características físicas, e, finalmente, com testes de DNA para corpos que não podiam mais ser reconhecidos. Essa é a fase em que estão agora, colhendo amostras de DNA de familiares imediatos.
Até que um dia o médico me liga e diz “Sra. Silvia, encontramos seu marido”. Era 23 de junho. Comecei a chorar e o médico legista me disse para que eu fosse ao seu encontro, às duas da tarde do dia seguinte, para reconhecer meu marido.
Meu cunhado me acompanhou. O médico nos mostrou algumas fotos do corpo. Era ele. Lá estava meu marido com suas roupas, partes de seu rosto ainda estavam reconhecíveis, como sua tatuagem no braço esquerdo com o símbolo ying e yang.
Embora o corpo já estivesse em decomposição, não tinha dúvidas de que ele era meu marido. A testa, o nariz, as mãos, os pés. Fiquei muito feliz e disse: “Finalmente encontrei você”.
Mas quando cheguei em casa desmoronei, fiquei muito triste. Pensei que a vida era injusta e não quis sair por cinco dias.
Me passou pela cabeça que meu marido sempre esteve nos contêineres do necrotério do Hospital del Guasmo e ninguém quis nos ajudar. Chorava e pergunta a Deus “por quê?”. Ele nunca foi uma pessoa má. Eu o amava muito e ele também me amava.
Foi muito difícil o dia em que fui reconhecê-lo. O médico me disse que o colocaram em um saco plástico preto com um pedaço de papel com o nome de outra pessoa escrito com uma caneta hidrocor.
Há uma semana me disseram que poderia retirar o corpo. Eles vão entregá-lo para mim e vou enterrá-lo no cemitério municipal de Ángel María Canals para que meu marido possa descansar em paz. Será o dia mais triste da minha vida.
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Um dia depois de compartilhar seu depoimento com a reportagem, na última quinta-feira(16 de julho), Silvia Guzmán recebeu o corpo de seu marido . Ele foi sepultado no Cemitério Municipal Ángel María Canals, em Guayaquil.